Se vivo fosse, o músico teria hoje 76 anos. Conheça sua trajetória, ouça sua música…
Por Marcello Rollemberg – Jornal da USP
O movimento político-religioso Rastafári tem cerca de um milhão de seguidores, a maioria residente na Jamaica. Foi lá, naquela pequena ilha caribenha, ex-colônia britânica, que se expandiu o movimento que via (e ainda vê) o ex-imperador da Etiópia, Hailê Selassiê – que governou o país africano de 1930 a 1974 – como a representação divina na Terra; mescla elementos judaicos e cristãos à sua crença e defende o retorno do homem negro pelo mundo para a África. Se os rastafáris têm no raquítico ex-imperador – que se dizia descendente direto da rainha de Sabá e do rei Salomão e que atendia também pelo nome de Ras Tafari, daí o nome da crença – sua divindade terrena e cultuam como deus Jeová ou, de forma mais íntima, Jah, eles tinham seu sumo-sacerdote, seu arauto para propagar suas visões de não violência, de afrocentrismo e de justiça social em um homem: Bob Marley. O mais conhecido músico de reggae de todos os tempos, famoso por popularizar internacionalmente o gênero, Marley – que já vendeu mais de 75 milhões de discos – morreu há exatos quatro décadas, no dia 11 de maio de 1981, vítima de um devastador e raro câncer de pele, aos 36 anos.
E o músico levou sua fé até a morte: o melanoma foi descoberto inicialmente debaixo da unha de um dedo do pé, em setembro de 1980, em meio a uma turnê pelos Estados Unidos. Os médicos aconselharam que o dedo fosse amputado, mas, fiel à sua filosofia rastafári, que afirma que o corpo é um templo que ninguém pode modificar – motivo pelos quais os rastas deixam crescer a barba e os dreadlocks, o que virou quase um estereótipo para eles –, Marley declinou da sugestão médica. Menos de um ano depois, o câncer havia se espalhado para estômago, cérebro e pulmão. Mas o legado de Bob Marley vai muito além de sua firme crença religiosa – que, entre outras coisas, defende o uso “espiritual” da cannabis, o que potencializaria, se fumada às 4 horas da manhã, a visão de Jah. Marley tornou o reggae um ritmo ouvido em todas as latitudes mundo afora e colocou músicas como Three little birds, No woman no cry, One love, Redemption song e Is this love na categoria de verdadeiros hinos pacifistas e amorosos, mesmo que politizados em alguns casos, sucessos em qualquer playlist bem apurada ou que queira propiciar um clima, sem precisar, necessariamente, apelar para espiritualidades vegetais.
Para se ter uma ideia, em 2019 – isso é, 38 anos depois da morte do cantor – suas músicas renderam para seus muitos herdeiros cerca de 23 milhões de dólares em royalties. Para quem não sabe, Bob Marley era pai de 12 filhos, sendo dois adotados.
E o que Bob Marley colocava em suas músicas – com letras nas quais amor, paz e solidariedade estavam quase sempre presentes, não necessariamente nessa ordem –, ele também levava para a vida fora dos palcos, como apoiar políticos em seu país que coadunassem com sua visão de mundo – e também ganhar apoio deles. Esse apoio, por sinal, quase lhe custou a vida em 1976.
Naquele ano, a Jamaica vivia um do seus períodos mais violentos, e Marley teve a ideia de fazer um concerto para promover a paz no país. O governo apoiou a ideia, mas dois dias antes do show a casa do cantor foi invadida por pistoleiros – para muitos, ligados à oposição política. Um tiroteio violento se seguiu, mas ninguém morreu. Marley levou um tiro que raspou seu peito logo abaixo do coração e penetrou profundamente em seu braço esquerdo e sua mulher Rita Marley – vocalista de seu grupo de apoio I-Threes – foi atingida de raspão na cabeça.
Mas o atentado não afetou os planos para o concerto, chamado de Smile Jamaica, e Marley, ainda com os curativos, fez o show pela paz e depois, no palco, mostrou os seus ferimentos ao público.
Ao ser questionado na época sobre o fato de comparecer ao show mesmo baleado, o músico não titubeou: “As pessoas que estão tentando destruir o mundo não tiram um dia de folga. Como eu poderia tirar, se estou fazendo o bem?”, afirmou ele, unindo em uma mesma frase toda a filosofia que inspirou sua vida e sua música. Não à toa, em 1978 ele recebeu da ONU a “Medalha de Paz do Terceiro Mundo”.
Música e futebol
Bob Marley nasceu Robert Nesta Marley em 6 de fevereiro de 1945, filho de um oficial inglês branco de 50 anos e de uma jovem negra de 18 anos. O pai de Bob voltou para a Inglaterra antes de o filho nascer e sem se casar com a namorada. Pai e filho nunca se conheceram. Marley e a mãe viveram no interior da Jamaica até finais dos anos 1950, quando a família – com a mãe já casada com outro homem – se mudou para a capital Kingston e foi viver em Trenchtown, a favela mais miserável da cidade. Lá, o jovem Bob Marley não teve um começo de nova vida tranquila, já que sofria bullying de outros rapazes por ser mestiço e ser considerado “baixinho”, mesmo com seu 1,70 m – ele não era um Usain Bolt, mas também não era um duende. Mas isso não atrapalhou Bob Marley nem lhe fez mal. Quando já era um adepto da filosofia rastafári, ele deu uma declaração que resumia bem sua visão de mundo e filosofia de vida: “Se todos nos unirmos e dermos as mãos, quem sacará as armas? Eu só tenho uma ambição: que a humanidade viva unida. Negros, brancos, orientais, todos juntos. Eu não estou do lado dos negros nem dos brancos. Eu estou do lado de Deus, que me fez vir do homem branco e do negro”.
Mas, enquanto não virava rasta, Bob Marley tinha um grande amigo para ajudá-lo nos momentos de aflição: Bunny, filho de seu padrasto. Era com ele que Bob ouvia os músicos negros americanos como Ray Charles e Fats Domino, além de big bands do R&B, sucesso garantido na ilha naqueles tempos. Mas o som americano entrou em declínio na Jamaica, no começo dos anos 1960, os produtores locais decidiram encontrar um som que representasse mais a realidade local, e encontraram o ska. Foi aí que Marley e Bunny, que já tinham aspirações artísticas, acharam um espaço para criar. Ao lado de outro aspirante a cantor, Peter Tosh – que mais tarde também faria uma importante carreira-solo –, eles criaram o grupo Wailing Wailers. Começaram tocando ska e outros ritmos jamaicanos, quase sempre se referindo à realidade dos jovens favelados de Kingston – o grupo escolheu esse nome para a banda porque Marley dizia que, ao nascer no gueto, as pessoas já vinham se lamentando. “Wail” significa “lamentar”.
Mas a virada de Bob Marley e seus “wailers” só se daria em 1966, quando o imperador Hailê Selassiê fez uma visita oficial à Jamaica. Foi o que bastou para que a crença rastafári – nascida no país nos anos 1930 mas um tanto adormecida – voltasse com força e pegasse o jovem cantor e compositor de jeito, depois que ele passou uma rápida e frustrada experiência nos Estados Unidos, onde a mãe havia ido morar com um novo marido. E em 1967, Bob Marley já não cantava mais as desventuras dos rapazes dos guetos jamaicanos e sim, temas sociais e espirituais, o que se tornou sua marca registrada e seu maior legado. Uniu-se novamente a Peter Tosh e Bunny para reorganizar o grupo que havia sido desfeito quando Marley foi para os Estados Unidos. Eles simplificaram o nome original Wailling Wailers para The Wailers e passaram a tocar uma versão mais lenta do ska e de outros ritmos jamaicanos, o que viria a ser chamado de “reggae”. Há certos conflitos quanto à etimologia do ritmo: alguns dizem que deriva das expressões “rege” ou “reggae”, que quer dizer “esfarrapado”, “maltrapilho”. Já o próprio Marley explicou que seria uma derivação de uma expressão em espanhol para “música do rei”. E não, não foi Bob Marley o primeiro a tocar o novo ritmo, já entoado por outros artistas jamaicanos na época. Mas isso realmente importa? De onde veio a palavra “reggae” e quem o tocou primeiro pode-se deixar para a Wikipedia. O fato relevante é que ninguém cantou e compôs reggae como Bob Marley nem levou o ritmo a uma expressão planetária como ele.
Foi uma trajetória de pouco mais de 13 anos, com 18 álbuns gravados, entre discos de estúdio e compilações de shows. O suficiente para tornar Bob Marley um astro de primeira grandeza no universo musical. E vários artistas gravaram suas músicas: I shot the sheriff foi a responsável pelo ressurgimento de Eric Clapton no cenário pop, depois de um período de ostracismo, e ‘Não chores mais’, a versão de Gilberto Gil para No woman no cry, foi um sucesso nas rádios brasileiras em 1979, para ficarmos só em dois exemplos. “Bob Marley era um dos grandes intérpretes dessa consciência de exclusão, da desigualdade. Foi o último artista a quem eu dediquei uma atenção profunda, específica e permanente. Hoje em dia ainda é das coisas que eu mais gosto de escutar”, escreveu Gilberto Gil, nas redes sociais, em 11 de maio de 2020.
Mas o artista tinha uma outra paixão além do reggae: o futebol. Fã declarado do futebol brasileiro, Bob Marley esteve algumas vezes no Brasil e, sempre que podia, ia jogar uma pelada no campo que Chico Buarque tinha em sua casa. Em 1980, por exemplo, participou de um jogo no Rio de Janeiro ao lado de Toquinho, o próprio Chico e Moraes Moreira. Há até aqueles que dizem que ele torcia para o Santos, mas pode ser só coisa de santista apaixonado. E o futebol pode até ser considerado um fator paralelo para sua morte: foi em uma pelada, em 1977, que Marley machucou o mesmo dedo que, sem os cuidados necessários, iria acabar desenvolvendo o câncer de pele que o mataria.
Mas o futebol também reserva homenagens a Bob Marley, e a última delas foi dada pelo clube Ajax, de Amsterdam, na Holanda. O clube criou uma terceira camisa em homenagem ao “rei do reggae”, toda preta e com as três barras que caracterizam seu fornecedor de camisas nas cores vermelho, amarelo e verde, as cores do reggae. Isso, além de três pequenos pássaros na parte de trás da camisa, também nas três cores. A razão? Antes dos jogos do Ajax, a torcida canta ‘Three little birds’. Uma linda homenagem e, nestes tempos bicudos, muito bem-vinda. Afinal, essa é aquela canção que diz, em seus primeiros versos: ‘Don’t worry about a thing, ‘cause every little thing is gonna be all right’. Então, vale a pena acreditar em Bob Marley: as coisas vão ficar bem.
Ouça Bob Marley & The Wailers Concrete Jungle The Grey Old Whistle Test