COP30: por que a juventude periférica de Manaus se sente distante?

Apesar de viverem os impactos diretos da crise climática, jovens das periferias de Manaus, capital do Amazonas, sentem que a COP30 ainda está longe de suas realidades.

Por Nicoly Ambrosio*  – Amazônia Real

Manaus (AM) – Nos becos, palafitas e baixadas de Manaus, a juventude convive com os efeitos dos eventos climáticos extremos, como as enchentes, a fumaça das queimadas e a falta de saneamento básico. É por isso que a promessa de colocar a Amazônia e seus povos no centro das discussões globais sobre clima não ressoa entre os jovens indígenas, negros e periféricos manauaras. Para eles, a COP30, que ocorrerá daqui a dois meses em Belém (PA), parece ser um lugar distante.

“Muito se fala na Amazônia, mas pouco se ouve quem vive na Amazônia urbana, nas palafitas, nas ruas de terra batida da periferia. A COP30 só vai ter sentido se conseguir criar pontes reais com as juventudes da base”, alertou o artista e ativista cultural Diego Brandão, o Dighetto, cocriador do Nepal Vive.

Movimento Nepal Vive é um exemplo prático de uma iniciativa independente que mostra que a juventude periférica de Manaus também sonha, cria e resiste em um ambiente afetado pela crise climática. Formado por jovens educadores, artistas e lideranças comunitárias, desde 2023, o grupo já promoveu mais de 20 ações culturais pautando educação, literatura e arte para questionar qual é o lugar dos jovens periféricos da Amazônia no debate sobre as mudanças climáticas.

Esse diálogo é realizado dentro da comunidade – nascida na avenida Nepal, no Nova Cidade, bairro da zona norte de Manaus – sobretudo nos eventos de cinema, nas batalhas de rima ou nas intervenções de grafiteiros. As questões ambientais ligadas às suas próprias vivências são o combustível criativo do coletivo. “A gente entende que a crise climática não é algo distante, é o que bate na porta da periferia todos os dias. Falamos de clima mostrando que essa é também uma luta de quem mora aqui. A cultura é a nossa língua. Quando a gente organiza um slam sobre a seca do rio ou pinta um muro falando da Amazônia, a galera entende porque sente isso no corpo”, disse Dighetto.

O ativista explica que os bairros periféricos de Manaus enfrentam os eventos climáticos extremos somados à falta de infraestrutura. Cerca de 34,7% da população do Amazonas vive em favelas e comunidades urbanas, segundo os dados do Censo 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Entre as 20 favelas mais populosas do Brasil, 8 estão na região Norte, 7 delas em Manaus. Para Dighetto, a COP30 não pode ficar apenas “no discurso”. É preciso que os representantes escutem a periferia que vive a Amazônia no dia a dia.

Diego Brandão, o Dighetto, cocriador do Movimento Nepal Vive (Foto: Movimento Nepal Vive).

“A crise climática não é só sobre floresta em pé, é sobre gente que vive, trabalha e resiste aqui. Se querem falar de futuro, precisam olhar para a juventude periférica agora. Que [a COP30] traga políticas públicas que realmente cheguem nas comunidades, como saneamento, transporte, cultura, emprego para a juventude. Queremos que a COP30 reconheça a Amazônia urbana como parte da floresta viva e que invista na juventude que é futuro, mas também presente da cidade”, declarou.

Eventos paralelos ocorrerão em Belém e um deles preparará as novas gerações para ocuparem, futuramente, espaços como os das COPs. Organizações lideradas por jovens de periferias brasileiras estarão pela primeira vez na linha de frente da COY20, a Conferência Climática Global de Juventudes, considerado o maior encontro internacional dedicado a crianças e jovens  do mundo inteiro para formação, articulação e elaboração política.

A co-anfitriania nacional da COY20 ficará a cargo do PerifaConnection, COP das Baixadas e Águas Resilientes. Integralmente organizada por jovens, com apoio da Youngo (Movimento Climático Juvenil), a COY encerra com a produção do Global Youth Statement, documento oficial entregue à UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) com propostas de políticas climáticas.

Encantarias contra a crise climática

Intervenção natural, pessoa em cima de tronco de árvore que foi cortado (Foto: Juliana Pesqueira/ Amazônia Real)

Apenas 44,8% da área urbana de Manaus possui cobertura arbórea, revelou o Censo 2022 em seu levantamento das características urbanísticas do entorno dos domicílios, incluindo a arborização urbana.  Especialistas apontam que essa densidade vegetal contribui para o aumento da temperatura da cidade e o agravamento do desconforto térmico. A ausência de áreas verdes reduz a regulação climática natural.

Manaus é também uma cidade cortada por igarapés, pequenos cursos d’água, a maioria poluídos ou aterrados. Localizado no bairro do Tarumã, na zona oeste, o Água Branca é considerado o último igarapé limpo e preservado da área urbana da cidade, mas já sofre com os impactos causados pelo avanço da urbanização, do desmatamento e da poluição.

Foi nesse contexto de pensar a degradação ambiental que surgiram as primeiras atividades do Coletivo Pererê no bairro Colônia Santo Antônio, na zona norte de Manaus. O coletivo trabalha com os seres encantados da Amazônia para falar de clima no território marcado pelas consequências da crise climática, afirmou Yasmin Vieira, jovem pesquisadora da Universidade Federal do Amazonas (Ufam) e produtora cultural do Coletivo Pererê.

As atividades do coletivo, voltadas para crianças e adolescentes da comunidade, unem processos artísticos inspirados nos elementos do Hip Hop (break, grafite, DJ e MC) e educação ambiental, além de uma escuta com os moradores de longa data do local, principalmente as mulheres, para trabalhar “práticas de cuidado coletivo”.

Atividade do Coletivo Pererê (Foto: Coletivo Pererê).

Uma das ações do coletivo usou desenhos, mapas afetivos e colagens para mostrar a diferença entre a realidade poluída dos igarapés do bairro e o “igarapé dos sonhos”, idealizado pelas crianças. “A gente começou a perceber que a arte mobiliza, e além de mobilizar, cria pertencimento também. Hoje aquelas crianças querem um igarapé diferente. Elas nunca viram um igarapé limpo na cidade, mas a gente conseguiu mostrar que existe uma possibilidade de você ter o igarapé limpo”, disse a ativista em entrevista à Amazônia Real.

Alagações frequentes, calor extremo, falta de saneamento básico e precariedade na coleta de lixo fez os integrantes do coletivo perceberem como esses problemas, muitas vezes naturalizados pelos moradores, estavam diretamente ligados à crise climática que afeta a vida na periferia. De acordo com dados do Instituto Lixo Zero, apenas 2% do lixo produzido em Manaus é reciclado.

“A gente vive em uma cidade cercada por água e a questão da nossa relação com os igarapés é central na crise climática. A gente tem vários igarapés na cidade, mas você vê todos poluídos. Quem vive na periferia sente muito mais isso. Dá uma chuva forte, alaga tudo. Você não consegue se movimentar pela cidade porque está tudo alagado. A gente vai sobrevivendo e vivendo em meio a isso”, afirmou a pesquisadora.

No entanto, a jovem relata que só ouviu falar sobre COP já na vida adulta e que, para ela, a conferência não dialoga com a realidade de quem vem das periferia de Manaus. Na sua visão, a realização da COP30 em Belém tem mais um valor simbólico.

“É um encontro para líderes mundiais que vão falar sobre o planeta. Mas e o hoje? Porque a gente vive o hoje. A gente passa pela fumaça, poluição, são coisas que a gente vive todo ano. É um espaço para reforçar essas desigualdades. Vai ficar muito nessa de assinar acordos, mas quase nenhum desses países cumprem, de fato, esses acordos”, destacou Vieira.

A expectativa de Yasmin é que a COP30 crie políticas públicas de cidade, de meio-ambiente e de saneamento. Propostas concretas e possíveis para uma vida digna nas periferias. “Nós somos a juventude negra, indígena, periférica, LGBT, que está pensando soluções criativas no nosso dia-a-dia através da cultura e da coletividade, porque sozinho ninguém vai fazer nada. Se o mundo todo quer salvar a Amazônia, eles precisam enxergar as pessoas que estão vivendo nela, não só como vítimas, mas como protagonistas que a gente precisa para agora. Não é uma coisa para daqui 2 ou 5 anos, essa transformação é para agora”, declarou.

Hip hop como ferramenta de luta

Circuito Perifa Amazônia 2025 (Foto: André Cavalcante).

O Perifa Amazônia também aposta na cultura como meio de ensinar justiça climática para a juventude periférica em Manaus. O coletivo traz MCs, DJs, grafiteiros e bboys e bgirls, todos os elementos do Hip Hop, em agendas de formação artística para as periferias. Uma de suas frentes de atuação é a defesa das florestas públicas da Amazônia, em parceria com o movimento Amazônia de Pé, levando às periferias o debate sobre a destinação de milhões de hectares ameaçados por desmatamento e grilagem. O objetivo é incentivar a mobilização popular para a assinatura do projeto de lei Amazônia de Pé, de iniciativa popular. Em sua mobilização territorial, o coletivo leva essas ações para escolas, universidades, praças e comunidades manauaras.

À frente da criação está Patrícia Patrocínio, comunicadora, pesquisadora e produtora cultural de Parintins (AM). Desde a adolescência, Patrícia esteve envolvida com o hip hop e a poesia marginal, experiências que se ampliaram quando se mudou para Manaus em 2015. Ao circular pelo circuito de batalhas de rima e slam da cidade, consolidou a visão de que a arte poderia ser um canal de formação política e social. Essa trajetória foi o que a levou a idealizar o Perifa Amazônia.

“Existe um movimento às vezes de distanciar o conhecimento da periferia, com uma linguagem rebuscada que dificulta essa informação chegar na base. A cultura hip hop consegue traduzir esses termos científicos e encantar a juventude nesse sentido. Cria pertencimento à luta climática, porque a partir do momento em que um moleque de periferia, uma mana de periferia, escuta um mano que vem também de outra periferia rimar sobre os impactos da crise climática na vida dele, eles começam a entender que ambos estão vivendo coisas parecidas”, disse Patrocínio.

A COP30 ocorre dez anos depois da adoção do Acordo de Paris, um tratado internacional juridicamente vinculativo sobre mudanças climáticas assinado por 195 países na COP21, em Paris, França, em dezembro de 2015. O objetivo do Acordo de Paris é manter “o aumento da temperatura média global bem abaixo de 2°C acima dos níveis pré-industriais” e prosseguir os esforços “para limitar o aumento da temperatura a 1,5°C acima dos níveis pré-industriais”.

Patrícia Patrocínio ao centro da roda durante atividade do Circuito Perifa Amazônia 2025 (Foto: André Cavalcante).

Em Manaus, o calor já está aumentando. Em outubro de 2023, a cidade registrou a marca de 39,2°C, temperatura mais alta em 32 anos, conforme o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet). Naquele ano, Manaus e o Amazonas enfrentaram a maior estiagem da história. Em setembro de 2024, a marca dos dias mais quentes do ano se repetiu, com a temperatura alcançando 39ºC. A sensação térmica foi superior a esse valor, chegando a 41°C. Esse calor também é sentido de forma desigual nas periferias.

“O impacto mais evidente é o calor. Está cada vez mais quente. A gente percebe o quanto o calor afeta a mobilidade das pessoas, ameaça sonhos e o acesso à educação das crianças. Eu já vi acontecer assim: ‘Ah, não levei fulano para a escola porque estava muito quente’. A gente pensa que para perceber os impactos da crise climática no nosso bairro ou em outros bairros, precisa acontecer uma grande tragédia. Isso é um sinal de alerta para a gente, o acesso à educação dessas crianças está sendo ameaçado por conta da crise climática”, explicou Patrícia.

Patrocínio observa que a COP30 é um espaço controverso e que o debate sobre a conferência chegou muito pouco nas periferias. No entanto, considera um local importante de se ocupar. “É muito desigual. A sensação que me dá é que a gente ficou muito de escanteio em relação à COP, assistindo tudo, mas como se a gente não tivesse sido selecionado para entrar em campo. Já posso presumir que a presença de coletivos de outros Estados vai ser bem maior do que a presença de coletivos do Amazonas ou de outros Estados da Amazônia”, atestou.

Jander Manauara é rapper, articulador cultural e ativista. Desde 1999, escreve e canta seus versos sobre a realidade política, cultural e climática de Manaus e em defesa da Amazônia. Ele está à frente da Associação Intercultural de Hip Hop Urbanos da Amazônia (AIHHUAM), uma organização que trabalha com letramento climático, oficinas e trilhas formativas sobre a questão de clima e cultura entre os jovens das periferias de Manaus e do interior do Amazonas. A AIHHUAM é a junção dos coletivos de Hip Hop Orígenas, da zona Leste, e Mandala, da zona Norte, consideradas as duas maiores áreas periféricas de Manaus.

A linguagem da associação conecta a cultura Hip Hop com as questões climáticas como forma de pertencimento às territorialidades amazônicas. São mais de 230 jovens lideranças apoiadas pela AIHUUAM em Manaus, Iranduba e Parintins, atuando como agentes de transformação socioambiental em suas comunidades.

Jander Manauara, rapper (Foto: Alonso Martins/602/TEDxAmazônia).

“Tanto a comunicação como a própria cultura não podem estar desassociados com a questão das mudanças climáticas. Pela linguagem do hip hop a gente pode pensar no clima, na questão do calor extremo, da chuva ou da vazante. Em linguagens fáceis de acesso de cultura de massa, seja em mainstream ou no underground, o hip hop consegue traduzir com mais simplicidade e falar a linguagem do povo de várias massas, de vários tipos de público. Seja nos quilombos, seja a malocada, seja em territórios indígenas, seja até nos territórios periféricos urbanos”, disse Jander Manauara.

O ativista observa que, querendo ou não, a COP30 dialoga com várias frentes, inclusive com as periferias de Manaus. Mas, quando se trata da capitalização dos recursos, a realidade é outra. “Quando olhamos para as periferias de Manaus, percebemos que os recursos anunciados desde a COP1 até a COP30 se fatiam. Na prática, o que chega às comunidades é apenas a brisa do que foi falado. A gente vê muita comunicação, vê a bolha climática sendo formada, mas os recursos e esses incentivos que deveriam chegar ou ser pagos por países ricos, não chega no chão, dessas lutas da periferia, principalmente de Manaus”, explicou.

O rapper Manauara diz acreditar que a COP30 precisa ser a conferência da implementação, garantindo que os recursos do financiamento climático cheguem às periferias da Amazônia urbana. Isso significa que os países ricos devem assumir sua responsabilidade e que, a partir do Brasil, os aportes de financiamento climático sejam direcionados até ministérios e secretarias capazes de alcançar territórios como as periferias de Manaus. Para ele, apenas com fortalecimento de órgãos ambientais e tempo para maturação das políticas será possível ver resultados reais nas comunidades.

“Que o Brasil também se coloque no lugar de destaque que ele tem de estratégia em relação ao clima. A gente poderia pensar em mudança nessa questão da exploração da foz do rio Amazonas, que vai nos atingir e que pode mudar no País. Que as políticas do Ministério do Meio Ambiente também sejam respeitadas e sejam fortalecidas, para que nas próximas COP, a gente consiga ter um resultado mais palpável dentro das periferias, com a questão da transição energética justa. Não só em Manaus, mas no Brasil inteiro”, acrescentou o rapper.

“O que esperamos é que a COP30 traga compromisso real com a vida da população amazônida, e não só discurso. Isso significa recursos chegando nas pontas, investimento em cultura e educação ambiental, políticas públicas que enfrentem os impactos do calor, das cheias, das queimadas. Queremos oportunidades de trabalho e renda ligadas à bioeconomia, mas que respeitem o território e fortaleçam as juventudes que já constroem soluções criativas na periferia. Escutem as juventudes marginais da Amazônia, porque a gente sente a crise climática na pele”, reforçou Patrícia Patrocínio.

Circuito Perifa Amazônia 2025 (Foto: André Cavalcante).

Foto de abertura: Atividade do Movimento Nepal Vive ( Foto: MovimentoNepal Vive).

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Nicoly
Nicoly Ambrosio

É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+ do Norte. Em seu trabalho fotográfico, utiliza suportes analógicos, digitais e experimentais para registrar cenas da Amazônia urbana e de manifestações artísticas de rua marginalizadas, como a pixação e o graffiti. Desde 2018, participa de exposições de arte independentes e coletivas em Manaus. Já expôs trabalhos fotográficos no 10º Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e na Galeria do Largo – Espaço Mediações (Manaus/AM, 2020). Recebeu o 1º Prêmio Neusa Maria de Jornalismo (2020), o Prêmio Sebrae de Jornalismo – AM na categoria Texto (2024) e o Prêmio Megafone de Ativismo na categoria Reportagem de Mídia Independente (2025). De 2020 a 2022, participou do projeto de Treinamento no Jornalismo Independente e Investigativo da Amazônia Real.

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Jornalista com experiência sobretudo em redação de textos variados - de meio ambiente à saúde; de temas sociais à política e urbanismo. Experiência no mercado editorial: pesquisa e redação de livros com focos diversos; acompanhamento do processo editorial (preparação de textos, revisão etc.); Assistência editorial free lancer. Revisora Free Lancer das editoras Planeta; Universo dos Livros e Alta Books. Semifinalista do Prêmio Oceanos 2020.

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