LUIS FERNANDO, SEMPRE “VERÍSSIMO” (Uma bela homenagem a ele, ao Mino e ao Jaguar)

Ou “verdadeiríssimo”, “autentíssimo”, como informa o dicionário. Ele, Jaguar e Mino Carta, que morreram em um espaço de dez dias, fizeram parte do que de melhor produziu a inteligência brasileira nas últimas seis décadas

Texto: Marcello Rollemberg*/Arte: Simone Gomes

Dez dias. Não mais que isso. Em pouco mais de uma semana, a cota de inteligência do Brasil – que anda meio claudicante nos últimos tempos, convenhamos – ficou mais pobre. Entre os dias 24 de agosto e 2 de setembro, morreram o cartunista Jaguar (aos 93 anos), o escritor Luis Fernando Verissimo (88 anos) e o jornalista Mino Carta (91 anos). Certo, começar um texto afirmando que a “inteligência está mais pobre” talvez seja um clichê – daqueles que nenhum dos três mencionados aqui assinaria e que, certamente, levaria Mino a um de seus rompantes de crítica ferina. Mas até os clichês podem ter o seu lado verdadeiro, inquestionável. E esse é o caso aqui. Não dá para falar das perdas de Jaguar, Verissimo e Mino sem pensar em quanto os três – cada um ao seu jeito, cada um com seu talento – colaboraram para elevar o nível da inteligência, da visão crítica e de uma compreensão de Brasil – mesmo que por vieses às vezes pouco ortodoxos – que teima hoje em ser fugidia.

Isso, se pensarmos que Jaguar, Mino Carta e Luis Fernando Verissimo pavimentaram suas carreiras durante um dos tempos mais agourentos da recente história brasileira, aquele coberto pelas nuvens sempre carregadas da ditadura militar (1964-1985). E em vez de se protegerem da intempérie, saíram na chuva para se molhar (ok, outro clichê, eu sei…). E confrontaram a bête noire fardada da forma que encontraram: Jaguar com seus cartuns ácidos e com sua obra-prima, criada em conjunto com muitas mãos: O Pasquim, aquele jornal fundado durante o AI-5 e que teimava em espicaçar a sociedade careta e cutucar os generais.  Em dado momento, todos os criadores da publicação provocadora foram parar na prisão. Mas isso é outra história. E os alicerces do edifício alquebrado daquela sociedade já tinham sido balançados.

Mino Carta – Foto: Ricardo Stuckert/PR- Wikipedia

Na mesma época – de meados para finais dos anos 1960 –, Mino Carta, sempre com seu refinamento estilístico e sua exigência jornalística, ajudou a criar e dirigiu publicações que se tornaram referências na imprensa nacional: Quatro Rodas (isso, sem nunca ter aprendido a guiar), Jornal da Tarde – um contraponto arejado ao seu irmão mais velho, o vetusto O Estado de S. Paulo – e aquela publicação que seria seu orgulho e seu maior trauma: a revista Veja. Décadas adiante, criou e recriou a Isto É, teve a frustração com seu Jornal da República e fundou a sua Carta Capital

E Luis Fernando Verissimo. O temporão dessa tríade – tanto em idade como em relação ao início da vida profissional, e talvez aquele que causou maior comoção com sua morte. É só a partir de 1973, quando publica seu primeiro livro, O popular, com uma coletânea de textos já publicados em jornal, que ele começa a chamar a atenção e tomar forma, até se tornar o principal cronista brasileiro de meados dos anos 1970 até hoje. Isso, mesmo tendo colocado como subtítulo de seu livro de estreia a frase em forma de alerta: “crônicas, ou coisa parecida”.

Não, não eram “coisas parecidas”. Eram crônicas das boas, que só foram ficando cada vez melhores com o tempo, com as décadas passadas, com o domínio pleno das palavras. Ou como ele mesmo se definiu certa vez, sendo um “gigolô das palavras”,  porque “vivia à custa delas, como um ‘cáften profissional’, exigindo-lhes total submissão”. E elas, meninas obedientes, atendiam a todas as vontades de seu senhor, que as transformou em um sem-número de textos de humor refinado, muitas vezes inesperado – mas outras tantas vezes com um tom reflexivo que poderia escapar ao leitor menos atento.

Já se disse que esse humor que Verissimo inoculava em seus textos fazia rir mais com o cérebro do que com a barriga, que fazia cócegas no cérebro. Ou seja, não era escrachado, mas sim sutil, provocante. Pode ser. Mas com certeza muita gente já deu boas gargalhadas com seus textos – e aí, riu com o cérebro, com a barriga, com o corpo todo. Muitos passaram por isso, e muitos ainda passarão. Com pouco mais de meio século de carreira literária, Verissimo publicou mais de 70 livros e vendeu quase 6 milhões de exemplares. E isso sem levarmos em conta que durante muito tempo ele não fazia ideia do que queria fazer na vida. Só tinha uma certeza: diante da sombra enorme de seu pai, Erico Verissimo, o criador de Incidente em Antares e da saga O Tempo e o Vento, Luis Fernando sabia que não queria ser escritor. Ou pelo menos, não seria romancista. Bastava um na família.

Pai, filho e letras

Até porque a concorrência era complicada, assim como sua relação com Erico. Introspectivo por natureza, Luis Fernando – era assim que ele se apresentava, principalmente ao telefone, talvez para fazer uma distinção necessária com relação ao pai – tinha um distanciamento com relação ao criador do capitão Rodrigo que fazia, por vezes, o velho Erico ter que perguntar por ele a amigos em comum. Como fez com o recém-falecido jornalista Ruy Carlos Ostermann, que na época trabalhava no mesmo jornal do futuro criador da Velhinha de Taubaté. “Como está o Luis Fernando? O que você me conta dele?”

Não cabe aqui enveredar por questões psicanalíticas. Deixemos isso para os terapeutas freudianos e o Analista de Bagé. (…) Havia, sim, um distanciamento respeitoso, somado à proverbial timidez, que se materializou de várias formas, como o cuidado em manter a sala de trabalho de Erico intocada por décadas – mesmo vivendo na mesma casa que o pai comprou nos anos 1940, Luis Fernando escrevia em outro aposento, cercado de livros e discos. A “toca”, como ele chamava. Ou mesmo na forma como se referia a Erico. O criador das comédias da vida privada chamava o autor de Solo de Clarineta de “o pai”. Não “papai”, “pai”. Era “o pai”, sem abrir mão do artigo inicial, quase como se referindo a uma entidade. Um gauchismo, talvez. Mas que pode querer dizer muita coisa.

O escritor Erico Verissimo – Foto: (Coleção Erico Verissimo/Acervo IMS)

Sobre a tal timidez, inclusive, Luis Fernando Verissimo foi sincero: “Minha timidez é… Por exemplo: tenho horror de fazer isso que estou fazendo agora, dar entrevista, falar em público e tal. Eu sempre digo que não dominei a arte de falar e escrever ao mesmo tempo, são duas coisas que se excluem, então é nesse sentido que se manifesta a minha timidez”, disse certa vez à RBS TV. Em outra entrevista, agora para o programa GloboNews Literatura, em 2012, ele falou sobre o seu conhecido comportamento introspectivo. Conhecido por respostas concisas em entrevistas, Luis Fernando Verissimo negou que fosse uma pessoa calada. “Não sou eu que falo pouco, os outros é que falam muito.” Convenhamos: para quem não gostava de dar entrevista, ele se submeteu a muitas delas ao longo das décadas. Ainda bem.

“Em qualquer contexto, Verissimo tinha a peculiaridade de estar presente e, ao mesmo tempo, parecer um personagem em si mesmo, refugiando-se no silêncio, absorto em sua subjetividade como um monge budista. Era como se tivesse sido inventado por Henfil, escrito por Millôr e interpretado por Chico Caruso”, escreveu Frei Betto logo após a morte do amigo de muitas décadas.

Mas se teimava em ser lacônico nas entrevistas – Jô Soares se confessou frustrado com uma tentativa de fazer Verissimo falar mais do que gostaria em seu programa –, ele foi prolífico naquilo que, dizia, sabia fazer melhor: escrever, domar e doutrinar as palavras ao seu bel-prazer. E as enfileirar em frases sutis, irônicas, inesperadas que passaram a habitar suas crônicas, como todos já sabem muito bem. Porque, já que preferiu se manter longe do romance – o território por excelência “d’o pai”, no qual só foi se aventurar quando já era um autor consagrado –, ele foi na direção do texto conciso da crônica, leve sem ser leviano, com graça, humor e muitas vezes levando a uma inflexão inesperada para o leitor. Já se escreveu, de forma até preconceituosa, que a crônica – por nascer em páginas de jornais e não em belas brochuras – é um “gênero menor”, quase uma segunda divisão estilística diante dos portentos de primeira classe que seriam a poesia, o romance e o conto. Nada mais equivocado. Primeiro, porque escrever um texto curto, com humor e profundidade, com observação aguda, é um trabalho exigente, não duvidem disso. Segundo, porque não dá para afirmar que seja “menor” um gênero no qual pontificaram Rubem Braga, Otto Lara Resende, Paulo Mendes Campos, Nelson Rodrigues… e Luis Fernando Verissimo.

Capa do Livro “As Cobras”, de Luis Fernando Verissimo – Foto: Divulgação

Palcos, páginas e a arte de observar

A crônica, talvez antes de mais nada – por mais perigosa que seja essa colocação –, é a arte de observar. Observar o mundo, com seus matizes por vezes imperceptíveis, o vulgar, o detalhe. Observar do simples ao grandioso. E transformar o que se observou em um texto personalíssimo. Ou, no caso de Luis Fernando, com o perdão do trocadilho, verissimo – algo “verdadeiríssimo”, “exatíssimo”. Está lá no dicionário. Ninguém carrega esse sobrenome impunemente. Luis Fernando nasceu superlativo. (…)

Com sua literatura refinada, travestida de humor e ironia, ele tangenciou mesmo a metafísica, partindo do simples, do comezinho, para ir além. “Ele era o personagem fantasiado mais convincente. Escrevia sobre um casal brigando pelo controle remoto e fazia parecer que estava narrando a Guerra de Troia”, escreveu Frei Betto.

Fosse falando da angústia de não ter o que ler em um quarto de hotel e, na falta de coisa melhor, aceitando a carta da mãe da telefonista – ”o pânico de estar, por exemplo, num quarto de hotel, com insônia, sem nada para ler não sei que nome tem. É uma das minhas neuroses” –, das idas e vindas de casais disfuncionais – ou melhor ainda, de casais normais perdidos em suas neuroses normais –, de funcionários chamados “Pessanha” ou Almeida”, de um primeiro namorado da esposa chamado “Mendoncinha”. Tudo cabia na lupa perscrutadora de Luis Fernando Verissimo. Mesmo que, diante do refinamento de seu texto, alguns possam não ter em algum momento entendido exatamente o que queria dizer.

Luis Fernando Verissimo publicou mais de 70 livros e vendeu quase 6 milhões de exemplares – Fotos: Divulgação

Isso aconteceu, por exemplo, em outubro de 2002, logo depois de Lula ter passado para o segundo turno das eleições presidenciais. O candidato que logo seria eleito presidente foi flagrado comemorando com um vinho caríssimo, Romanèe-Conti. Para quê? A direita furibunda da época – que perto da atual, um tigre hidrófobo, mais parecia um gatinho angorá – crivou o futuro presidente de críticas das mais absurdas. Onde já se viu um proletário tomar vinho caro? Era um gatinho, mas sabia quebrar louças.

Verissimo se aproveitou desse discurso raivoso e adotou-o na crônica A Audácia, publicada em O Globo, justamente para criticar e expor a visão preconceituosa e ridícula de quem atacava Lula. O texto começava assim:

“Quem o Lula pensa que é, tomando Romanèe-Conti? Gente! O que é isso? Onde estamos? Romanèe-Conti não é pro teu bico não, ó retirante. Vê se te enxerga, ó pau-de-arara. O teu negócio é cachaça. O teu negócio é prato-feito, cerveja e olhe lá. A audácia do Lula!”

Só que o resultado passou longe do esperado. No dia seguinte à publicação, a seção de cartas do jornal carioca apresentou oito considerações a respeito da crônica: quatro a favor, quatro contra. O problema é que nenhuma delas entendeu nada do que Verissimo quis dizer. Os que criticavam , chamavam o autor de “direitista” – logo ele, seguidor de uma esquerda ponderada e crítica, mas ainda assim, esquerda. Os que apoiaram… bem, dá para imaginar.

A saída de Verissimo diante desse quadro descalibrado foi uma demonstração de ética, profissionalismo e humildade. No final da tal seção onde ninguém entendeu bulhufas, ele escreveu: “Quando o leitor não entende o que um jornalista escreveu, a culpa é sempre do jornalista. Peço desculpa a quem não entendeu a intenção da coluna. O alvo era o preconceito social implícito na reação desmedida ao fato do Lula ter tomado um bom vinho. Talvez tenha faltado o aviso ‘Atenção, ironia’. De qualquer jeito, culpa minha”. (…)

Por mais que se dissesse satisfeito em ser lembrado como saxofonista, será por seus textos, principalmente suas crônicas, que Luis Fernando Verissimo terá eternamente um lugar de honra no panteão dos grandes escritores brasileiros. Até porque, em um país carente e desigual como o Brasil, com uma educação muito aquém das necessidades sociais, muitos jovens, ao longo dessas suas cinco décadas de estrada literária, passaram a gostar de ler, passaram a amar o livro, graças a suas crônicas. Acessíveis, inteligentes, bem-humoradas, instigantes. Pode-se dizer, quase sem exageros, que Luis Fernando Verissimo ajudou o Brasil a ler mais.

Assim como ajudou, ao lado de Jaguar e Mino Carta, a tentar entender este país que parece viver com a bússola descompassada. Os três – cada um a seu jeito, como foi dito lá em cima deste texto – procuraram compreender o Brasil e explicá-lo – mesmo que essa explicação viesse eivada de ironia. E a responder a tantas perguntas que teimam em ser feitas. Procuraram dar respostas, cada um à sua maneira. Mas aí… Bem, aí fica uma última frase de Luis Fernando Verissimo, para reflexão: “Quando a gente acha que tem todas as respostas, vem a vida e muda todas as perguntas.”

*Marcelo Rollemberg é editor do Jornal da USP (que publicou originalmente esse texto). Para ler na íntegra acesse aqui 

Se você gosta do nosso trabalho, comente, curta o PortalPlenaGente+, marque nossa plataforma nas redes sociais e compartilhe nosso conteúdo! A gente agradece!

Portal Plena Gente+

ana.vargas@portalplena.com | Website |  + posts

Jornalista com experiência sobretudo em redação de textos variados - de meio ambiente à saúde; de temas sociais à política e urbanismo. Experiência no mercado editorial: pesquisa e redação de livros com focos diversos; acompanhamento do processo editorial (preparação de textos, revisão etc.); Assistência editorial free lancer. Revisora Free Lancer das editoras Planeta; Universo dos Livros e Alta Books. Semifinalista do Prêmio Oceanos 2020.

One comment

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *