MINHA PELE PRETA: RELATO DE UMA AUTORA QUE USA A ESCRITA (TAMBÉM) COMO FORMA DE RESISTÊNCIA

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Racismo e bullying sempre fizeram parte da vida da escritora Clarisse da Costa. Aqui ela nos conta um pouco de suas muitas ‘batalhas cotidianas’

 

Por Clarisse da Costa*

Eu vivi o racismo e não conhecia o racismo. Um tanto complexo isso que eu disse né?  É que na infância o preconceito não era tão escancarado como é nos dias de hoje, não existia computadores e celulares. As leis eram desconhecidas e os atos racistas não eram considerados crimes. Pareciam até ‘normais’  ainda mais  viessem de uma criança.

Nesse contexto, minha pele preta parecia ser algo inaceitável nesse estado, Santa Catarina, berço de alemães. Dentro de uma sala de aula com 29 alunos brancos eu ouvia de tudo, todos os estereótipos eu recebia. O que mais me chateava era não saber o que fazer, eu não tinha as mesmas armas que tenho hoje para lutar.

Eu chegava em casa e ouvia a minha mãe dizer: – Faz de conta que não é com você.  Mas como ignorar? Como não deixar que isso me afetasse?
Teve um dia em que um garoto jogou pedra nas minhas costas por causa da minha pele escura, eu pedia para parar e ele continuava.

Anos difíceis, nem amigos eu tinha, a minha  fragilidade me fazia desejar sumir da cidade onde  vivi a infância.

Ninguém é forte no final, tanto eu como você sabemos disso. Nossas fragilidades nos levam no alto grau da nossa determinação. Não queremos ser frágeis o tempo todo, sempre que pudermos vamos segurar o barco e remar contra a maré.

Mas como uma criança pode conscientizar outra criança a esse ponto de vista? Eu era apenas uma menina e ouvia outras crianças me chamarem de tudo, eu era chamada de macaca e muito mais.  Sempre tive o pensamento que eu não era diferente dos outros que estudavam comigo, ao meu ver, a única diferença era a cor da pele, mas isso não deveria ser levado em conta. O meu coração tinha a mesma batida das outras crianças. E naquela época o racismo não era algo do meu conhecimento. Parei para pensar em tudo e tentar compreender quando minha mãe faleceu. Senti que precisava mudar a vida a minha volta.
Nós somos mais que corpos. Não é a cor da nossa pele que vai dizer quem somos. Não é  ela que vai testar o grau da nossa honestidade.

Mas, infelizmente, o Brasil é um país de aparências, sempre vamos ter que lutar, mesmo que  o cansaço chegue. Na escola eu não tinha representatividade, nossa história se resumia à época da escravidão, foi então que a leitura me trouxe a necessidade de escrever, foi como um meio de fugir da realidade cruel. Eu me vi nas páginas de um livro chamado ‘Saudades da Vila’. Eu era Benê, o personagem da história, o único negro no meio de muitas crianças brancas buscando a aceitação de todos. Quase impossível.

A partir daí a minha relação com a escrita foi crescendo e, junto dela, todos os questionamentos. Depois a necessidade se tornou um amor que dura até hoje. Uma jornada literária difícil para quem mora em Santa Catarina.

Há quem se sente à mesa e diga que o racismo não existe, mas ele existe sim, desde os pequenos gestos aos grandes gestos. Então, você pode imaginar como é difícil a vida da população negra por aqui, ainda mais quem teve a ousadia de ser escritor ou escritora. Ousadia? Sim. Estamos ocupando um espaço que de início foi dos escritores brancos. E como sou mulher a ousadia é maior, ocupo um espaço que sempre foi ocupado por homens. A mulher na literatura passou por um período de opressão. Em tempos anteriores, mulheres não podiam sequer estudar, apenas se dedicar a casa, aos filhos e ao marido.

Nos últimos anos temos sofrido com ataques racistas de todos os lados e, por experiência própria, posso dizer que não é nada fácil, às vezes lutamos  sozinhos. 

Ver uma preta ou um preto conquistando espaços é calar a boca de muitos racistas. Eu não sei se calei a boca de muitos racistas em Biguaçu, cidade onde  moro, mas quebrei a barreira da opressão racial ao lado do escritor Samuel da Costa, da cidade de Itajaí,  quando publicamos, em 2022, o livro ‘Hiper-Grafia’. Depois desta obra, publiquei o meu primeiro livro solo ‘Nagô das Negras’ em prol das mulheres pretas.

Claro, que com a escrita surgiram novos objetivos, novos sonhos, novas paixões. Além da  escrita hoje eu faço arte digital e com essa arte eu retrato a nossa africanidade. De início retratei somente a força da mulher preta, hoje retrato também a força do povo africano como um todo.

Essa é a minha história marcada por conquistas, lutas e opressão. História que traz a triste  marca dos nossos antepassados. Afinal de contas somos herança de muitas pessoas que foram escravizadas. Lembrando que não foram somente os africanos que passaram por isso, também tivemos  povos indígenas escravizados.
Porém, ambos viveram a escravidão de forma diferenciada.  

Parece algo repetitivo até mesmo clichê falar sobre a escravidão, mas como falar sobre determinado assunto que envolve a nós, negros, sem falar da escravidão? Tudo tem o princípio e o princípio é este. O princípio de um país doente e de pessoas cruéis. Muitas vezes não sei como encarar essa situação.

No dia da Consciência Negra parece que passamos a existir para todos da nossa sociedade brasileira, ícones da comunidade negra são exibidos em sites, redes sociais, grandes mídias, tanto em empreendimentos de negócios quanto em  movimentos da área literária, cultural e televisiva.  Na literatura brasileira a escritora Maria Carolina de Jesus é exaltada. Mas isto não é o bastante, vemos uma falsa preocupação com as nossas questões raciais. Lembro que nossa sociedade sempre negou o racismo  no Brasil. Hoje parece existir uma preocupação desmedida que leva a crer, erroneamente, que há numa política democrática a nosso favor.

Mas nós bem sabemos que ela não existe. Acredito que enquanto a consciência de todos não for humana, nós negros teremos que viver lutando até morrer.
Eu realmente desejo que a sua consciência seja humana e voltada para  uma sociedade igualitária, pois cresci com a sua “não existência”. 

 

 

*Clarisse da Costa é escritora, catarinense, designer, YouTuber e Imortal na Academia Mundial de Cultura e Literatura. Publicou os seguintes livros: ‘Hiper-Grafia’ (em parceria com o escritor Samuel da Costa) pela Editora Ipêamarelo e ‘Nagô das Negras’ pela Editora Brunsmarck. Também organizou  as antologias  ‘Mulheres da Resistência’; ‘O Cálice do Desejo’; ‘Por Mais Amor’; ‘Até Breve Amor’ e ‘Africanidades e Lutas’ (Editora Contos Livres) e ‘Paixões à Flor da Pele’ ( Editora Brunsmarck). É  colaboradora das revistas Arte Brasileira e Vip Mag.   

Redes sociais da autora: Instagram @clarisse_da_costa/ Facebook Clarisse Costa/YouTube Clarisse Versátil/ YouTube Ação Brasil e África

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