Mulher trabalhou por mais de 30 anos sem salário. Para garantir execução, juíza declarou nula doação de imóvel na praia para neta
Kalleo Coura (Jornal Jota)
A juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte, da 30ª Vara do Trabalho de São Paulo, condenou um casal de empresários a pagar cerca de R$ 750 mil a uma mulher submetida a mais de 30 anos a trabalho análogo à escravidão. Além disso, eles terão de pagar R$ 50 mil de danos morais coletivos, reversível ao Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).
O valor de R$ 750 mil diz respeito aos salários não pagos de 1989 a julho de 2022, quando a idosa foi resgatada, além de férias indenizadas, 13º salário, FGTS+40% sobre os salários devidos a partir de outubro de 2015 e ao pagamento de danos morais individuais, no valor de R$ 50 mil.
De acordo com o depoimento da vítima, que hoje tem 69 anos, ela foi procurada no abrigo em que morava para trabalhar como empregada doméstica na residência do casal e para cuidar dos filhos pequenos em troca de um salário mínimo por mês. Mas ela nunca recebeu um pagamento sequer pelo trabalho, “pois já no primeiro mês quebrou a máquina de lavar roupa e a patroa disse que iria descontar”.
A rotina dela, de acordo com o depoimento, era acordar por volta de 6h00 e, quando as crianças eram pequenas, levá-las para a escola. Também iniciava os cuidados com a casa e servia o café da manhã para as crianças e depois para os patrões; cuidava da roupa e servia o jantar, que inicialmente era às 19h e depois passou a ser por volta das 22h ou 23h — e só descansava depois disso.
Em troca do trabalho, de acordo com ela, o casal oferecia “moradia, alimentação, materiais de higiene pessoal e também davam dinheiro para comprar cigarros e biscoitos”. Ela também contou que não usufruiu de férias ou períodos de descanso.
O casal, em sua defesa, disse que mantêm laços familiares com a mulher e lhe proporcionou “ambiente familiar e acolhedor por anos” depois de a terem resgatado de uma situação de rua, de forma que recuperaram a dignidade da idosa e garantiram “afeto familiar”. Também argumentaram que ela dispunha de total liberdade de ir e vir, mas que por opção própria, pouco saía de casa. Levando tudo isso em conta, consideram que a “ação é um exagero”. Também desqualificam a empregada ao dizer que ela é alcoólatra, tem “certo esquecimento e um pouco de confusão mental e agressividade”, e que ela agredia a patroa.
Em depoimento, a empresária negou que não remunerava a mulher. Ela disse que quando a retirou do abrigo, combinou que pagaria um valor inferior ao salário mínimo, que variou entre R$500 e R$800, e que não registrou a carteira de trabalho por erro. A mulher confessou que em certa ocasião trancou a empregada na lavanderia, “mas nem sabe o porquê”; e que “logo depois abriu a lavanderia”.
Já o empresário contradisse a esposa no depoimento. Ele afirmou que entendia que estavam tirando uma pessoa da rua para ajudar, sem pagamento de salário; e que não sabia dizer se sua mulher havia oferecido salário a ela. Além disso, disse que nunca havia pensado em registrar a carteira de trabalho da idosa.
Em 2014, a mulher procurou ajuda pela primeira vez no Centro de Referência Especializado de Assistência Social da Mooca. Na ocasião, houve uma conversa com o casal e foi acordado que eles registrariam o vínculo de emprego da vítima e pagariam os créditos trabalhistas devidos, o que nunca foi cumprido. Na ocasião, o casal afirmou que iria vender um imóvel, na cidade de Caraguatatuba, para regularizar a situação da mulher, mas acabou transferindo-o para a neta deles. Agora, em juízo, o homem disse que se esqueceu do que foi acordado.
Para a juíza Maria Fernanda Zipinotti Duarte, os fatos são “incontroversos”: a mulher foi contratada pela empresária quando se encontrava em um albergue destinado a moradores de rua, tendo sido combinado que tomaria conta da casa e das crianças, mediante pagamento de salário, ainda que inferior ao mínimo legal. A afirmação de que um salário foi pago à mulher por muitos anos não merece crédito, de acordo com o entendimento da juíza. Afinal, isso sequer é mencionado na contestação apresentada nos autos.
“É irônica, acintosa e de nítida má-fé a alegação” de que, mesmo tendo celebrado acordo formal perante a autoridade do Ministério do Trabalho e Emprego em 2014, “esqueceu-se de registrar” a carteira de trabalho.
“O labor em condição análoga à escravidão assume uma de suas faces mais cruéis quando se trata de trabalho doméstico. Por óbvio, a trabalhadora desprovida de salário por mais de 30 anos (!!!) não possui plena liberdade de ir e vir”, disse a juíza Fernanda Zipinotti Duarte. “Não possui condições de romper a relação abusiva de exploração de seu trabalho, pois desprovida condições mínimas de subsistência longe da residência dos empregadores, sem meios para determinar os rumos de sua própria vida”. A alegação de que “nada faltou” à mulher não é excludente da relação de emprego, disse a magistrada. Sequer as alegações de que ela assistia à televisão, foi a show do “Criança Esperança”, possuía a chave da casa ou o fato de “gostar dos patrões” fazem concluir que fosse membro da família e não empregada, afirmou a juíza. Por tudo isso, a magistrada reconheceu o vínculo de emprego, de 01/01/1989 a 27/07/2022, na função de empregada doméstica, com salário mensal de R$1.284,00 (salário mínimo regional, à época da rescisão). O empresário tem o prazo de de 5 dias para registrar a carteira de trabalho da idosa, sob pena de multa diária de R$1.000,00, limitada a R$50.000,00, reversível à trabalhadora. Por fim, para garantir a execução da condenação, a magistrada declarou nula a doação do imóvel à neta de 14 anos do casal.
O processo foi movido pelo Ministério Público do Trabalho.
(imagem de abertura: Crédito: Marcello Casal Jr./Agência Brasil)
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