Um dos mais respeitados jornalistas do país, Lúcio Flávio Pinto há mais de 30 anos cobre a região amazônica.
Reproduzido do Blog do Mello
Em artigo publicado no Amazônia Real, ele narra alguns sufocos por que passou nesses anos e dá sua versão sobre o aumento da violência na região, que culminou com os recente assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Philips:
Estive presente em quase todos os fatos importantes na Amazônia ao longo de quase 30 anos. Fui ver com meus próprios olhos o que acontecia em cada um dos Estados da região, em dois terços da extensão do país, a partir da minha base, como correspondente de O Estado de S. Paulo em Belém. Testemunhei conflitos de terra, trabalho escravo, assassinatos, garimpagem, invasão de reservas indígenas, derrubadas e incêndios de florestas, tensão em torno de grandes empreendimentos econômicos e outros itens de uma pauta marcada por muita violência.
Às vezes chegava, sozinho, no cenário de uma guerra não-declarada, não-convencional, mas cheia de choques e mortes, sob constante suspense, como se a metrópole, distante 3 mil quilômetros, ficasse há séculos no tempo. Sentia-me como se fosse um autêntico correspondente de guerra. Mas fui e voltei nas minhas viagens. Salvo e, aparentemente, são.
Aprendi que revelar informações sobre negócios escusos com o dinheiro público e os esquemas políticos que os mantêm pode acarretar dor de cabeça. Especializado nesse tipo de assunto, me acostumei-me a receber ameaças, inclusive de morte. As primeiras me fizeram tremer. Mas percebi que, na maioria das vezes, era apenas intimidação. Se afrouxasse, elas cessariam. Se me mantivesse firme, era pagar para ver. Eu tinha que pagar: queria continuar a ser um jornalista respeitado até o fim dos meus dias.
Foi o que fiz quando um mulato enorme começou a aparecer à noite na redação de A Província do Pará, o abrigo local para minha atividade de correspondente nacional. Ele chegava ameaçador, perguntava por mim e depois ia embora. É que eu reproduzira o boletim interno do comandante do 2° BIS (Batalhão de Infantaria de Selva), a unidade de elite do Exército em Belém.
O tenente-coronel Nivaldo de Oliveira Dias se recusou a aceitar a versão oficial sobre o atentado no Riocentro, em 1981, de que terroristas de esquerda haviam jogado uma bomba no carro em que se encontravam um sargento e um capitão do Exército, do lado de fora do show em favor da anistia. “Foi gente nossa”, diria o oficial, com incontida indignação. Apesar do futuro que o aguardava, Dias sacrificou a bela carreira ao redigir o boletim.
O emissário tinha o propósito de intimidar o repórter responsável pelo vazamento e a redação que o apoiou. Felizmente, não conseguiu seu objetivo. As luzes da democracia já começavam a deixar para trás a escuridão pela qual trafegavam os radicais do regime.
Assim as forças de segurança da ditadura militar agiam contra os personagens incômodos, mas tolerados, se resistentes e se mantivessem ao largo da luta armada contra o regime. Nas frentes de avanço sobre os lugares mais remotos, o cenário era mais movimentado. E arriscado.
Eu estava em Tucumã, no distante sul do Pará, em 1977, testemunhando o início do – posteriormente fracassado – projeto de colonização da Construtora Andrade Gutierrez no Xingu. Queria antecipar a volta, mas o avião só podia me apanhar no dia seguinte.
Passou então por ali um monomotor, sem porta e sem bancos, só o assento do piloto, única pessoa no aparelho. O impulso de escrever logo a matéria me fez lhe pedir carona, que ele concedeu. Sentei no fundo do teco-teco, que voava a menos de 500 metros de altitude. Estava levando peões de Xinguara, no Araguaia, para um desmatamento no Iriri, afluente do Xingu.
Ele não parava de olhar pelo retrovisor, como se procurasse se lembrar de mim. Por fim, perguntou se eu era “o famoso jornalista”. Modesto, confirmei. Com um riso sardônico, se apresentou:
– Trabalho para aquela madeireira que o senhor acusa de grilar terras.
A partir desse cartão de visitas, me encolhi ainda mais no fundo do avião, mantendo minhas pernas na posição de defesa. Por elas, procurava convencê-lo de que, a qualquer movimento contra mim, me atiraria contra ele. Não iria sozinho para baixo, se a intenção dele fosse a de me atirar de lá de cima.
Mas ele só queria mexer com meus nervos. Deixou-me cavalheirescamente em Xinguara e seguiu para a pista da madeireira. Logo em seguida, aliás, pousou em Xinguara outro monomotor, trazendo um repórter do jornal A Província, e emendei mais uma carona. Que terminou em Belém sem outros atropelos, exceto uma hora e meia de voo rasante sobre o rio Tocantins, cujo leito o piloto procurou porque ao redor, sobre as altas árvores amazônicas, deixou de haver teto. Espessas nuvens negras das tempestades amazônicas cobriam tudo. Mas sem novidade.
Em 1984, mal cheguei de uma temporada acadêmica nos Estados Unidos e fui logo passando direto para uma situação bem amazônica, 500 quilômetros ao sul de Belém. No meio de uma estrada entre Marabá e Parauapebas, 5 mil ferozes garimpeiros concentrados diante de 500 homens da Polícia Militar embalados.
Os garimpeiros tentavam prosseguir pela PA-257 para chegar ao topo da serra dos Carajás, a 400 metros de altura, onde está a sede da maior mineração de ferro do planeta. A missão da tropa era impedir de qualquer maneira esse avanço. Irados, os garimpeiros queriam se vingar da (ainda estatal) Companhia Vale do Rio Doce, a dona da mina.
Atribuíam-lhe a culpa pelo fim da garimpagem de Serra Pelada, determinado pelo governo dias antes, naquele atribulado mês de junho. Em apenas quatro anos, Serra Pelada produzira 40 toneladas de ouro. Um garimpo como nenhum outro houve antes. Ouro de valor multiplicado porque o Brasil estava com suas reservas cambiais próximas do nível zero, no eclipse do inacreditável governo Figueiredo.
Um garimpeiro propôs para o comandante da tropa, um capitão:
– Deixa ao menos a gente destruir o aeroporto. Depois a gente desce.
Apesar de construído numa das clareiras da serra, o aeroporto era tão moderno quanto o da capital paraense. Só a vila, habitada por 6 mil pessoas dependentes da mineração, consumira dezenas de milhões de dólares de investimentos. No total, o Projeto Ferro Carajás representava quase 3 bilhões de dólares em imobilização de capital.
Não, os garimpeiros não podiam continuar avançando pela estrada, cujo bom asfalto constituía uma raridade no precário sertão amazônico. Indicava, com a ferrovia, ao lado, a importância daquele empreendimento, um enclave de Primeiro Mundo num entorno de padrão africano.
A expressão no rosto daqueles homens rudes, a maioria deles ex-lavradores maranhenses expulsos de suas terras, era feroz. A polícia dizia que vários estavam armados, senão de rústicos revólveres, de facas e estoques. Muitos teriam se drogado para aumentar a agressividade. No mínimo, maconha. Estavam tresnoitados. Gritavam ofensas para a tropa, postada a não mais do que 20 metros de distância.
– Soldado filho da puta, sai da frente! – gritavam.
Diante de PMs armados, mais do que coragem, era supina insensatez. O capitão corria entre as fileiras de soldados tentando manter o controle. Também gritava:
– Ninguém atira! Ninguém atira!
Um soldado, com fuzil em posição de tiro, lamentava, entre dentes:
– Esse porra de capitão só atrapalha. Se fosse o sargento, a gente já tinha queimado esses desgraçados.
Mas o capitão segurou seus homens, com seus fuzis e umas poucas metralhadoras, o metal consumido com tanto suor acumulado no seu uso. Um tiro disparado teria desencadeado uma tragédia. Centenas de garimpeiros morreriam, mas a relação era de dez para um. Passariam pela tropa. O recurso seguinte, já definido, era explodir a ponte de concreto sobre o rio Parauebas, a principal obra-de-arte da rodovia. Bananas de dinamite haviam sido instaladas nas colunas. Quantas pessoas teriam que ser sacrificadas?
Os garimpeiros, gente que nada mais tinha a perder, exceto a desvalorizada vida, arrefeceram. Deixei a lateral da pista e fui conversar com os supostos líderes, me aproximando com cautela. Era o único repórter presente. Todos os outros tinham ido para Marabá e Serra Pelada.
Enquanto eu conversava com os garimpeiros, de costas para a tropa, o capitão deu ordem de descansar. Um dos soldados arriou com força o fuzil no asfalto. A bala, que estava na agulha, foi acidentalmente disparada para o ar. Susto. Agitação. Gritaria. Ameaças. Por alguns segundos fiquei estático, aguardando o choque de uma bala nas minhas costas, entregue à morte como Isaac ao sacrifício de Abraão. Apesar da confusão, porém, nenhum outro tiro foi disparado.
Retomando o contato com a realidade, dei alguns passos e me atirei de volta à lateral da estrada. Do chão fiquei contemplando os dois grupos que se aproximavam, ameaçadores, os soldados embalados, os garimpeiros praguejando com fúria. Mas o choque iminente não se consumou. Por milagre.
Passados alguns minutos, a tensão foi-se dissolvendo. Pude voltar para casa com minhas matérias jornalísticas.
Lembrando desses episódios, me faço a pergunta que o massacre do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira me provoca: se viajasse pelos sertões amazônicos nestes dias, eu continuaria a voltar? Acredito que não. O aparente paradoxo, que se manifesta pelo maior risco para jornalistas em uma democracia do que sob uma ditadura, se explica pela presença de uma extensão sobrevivente da cultura do terrorismo de Estado no comando do país.
Jair Bolsonaro homologou a violência nas frentes que avançam sobre as áreas ainda isoladas da Amazônia à cata de riquezas a qualquer custo e para obter o maior lucro, mesmo que seja à base de destruição da natureza e das fontes dos produtos que são buscados. O presidente da república protege esses “bandeirantes” de velho estilo e lhes aponta seus inimigos, deles e da autoridade máxima do país.
Pessoas como jornalistas que perguntam demais para encontrar a verdade e indigenistas que protegem demais os índios dos seus exploradores. Seres da floresta, portanto. Por isso, eles são queimados, mortos e enterrados.
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