Você sabia que a música é um poderoso instrumento que pode auxiliar, e muito, no tratamento dos portadores da doença de Alzheimer? Sabia que através do estímulo provocado pela música, o cérebro cria novas sinapses* que podem recuperar memórias deterioradas pela doença?
Ana Claudia Vargas
Nesta entrevista, a Musicoterapeuta e Neuropsicóloga, Bruna Rodrigues Ribeiro, que atende em S.Paulo, fala sobre sua profissão e ressalta quais são os benefícios da musicoterapia para os portadores de Alzheimer (entre outras doenças).
Bruna, há quanto tempo você trabalha nesta área?
Atuo com o público de Idosos e Demências há 10 anos, em atendimentos grupais e individuais. Já participei de pesquisa de novos medicamentos para a Doença de Alzheimer atuando como avaliadora cognitiva. Hoje em dia faço parte da equipe de Neuropsicologia do Setor de Neurologia da Unifesp.
Porque escolheu esta profissão?
Sempre fui muito envolvida pela música desde a infância e, principalmente, quando comecei a estudar violão quando tinha 12 anos de idade. Quando descobri que havia uma profissão que usava a música na reabilitação da saúde não tive dúvidas do caminho que iria seguir. Escolhi essa profissão pelo amor que tenho à música e pela capacidade que ela mesma de provocar mudanças na vida das pessoas.
Como é a formação de um musicoterapeuta?
A formação é feita por uma faculdade de bacharelado em musicoterapia, que é um curso de 4 anos e 400 horas de estágio, onde conhecemos a parte humana, musical, a teoria e prática das técnicas específicas de musicoterapia. Há também a formação através dos cursos de especialização, que são mais breves, mas para ser realmente um musicoterapeuta é necessário a formação no curso de bacharelado.
Fale um pouco sobre a musicoterapia.Na musicoterapia usa-se da relação sonora e musical para tratar questões diversas, atende-se casos neurológicos, psiquiátricos, traumas emocionais, transtornos de personalidade, deficiências, pessoas em vulnerabilidade social e também pode ser utilizada em processos de recrutamento e seleção e para vivências em equipes profissionais. A musicoterapia utiliza técnicas específicas para cada objetivo, o paciente não tem que ter conhecimento musical para ser beneficiado pelas sessões, pois o musicoterapeuta conduzirá o processo baseado na história sonora que o paciente construiu com a música durante toda a sua vida. A musicoterapia é uma modalidade de tratamento mais lúdica e muitas vezes oferece acesso mais rápido em questões emocionais de cunho psicológico, pois a música é capaz de quebrar barreiras e facilitar a expressão do paciente. Uma sessão de musicoterapia pode se dar de diversas formas, o paciente pode cantar, tocar, ressignificar a letra de uma canção, se expressar não só sonoramente através dos instrumentos musicais; mas também através de textos, desenhos e pinturas. Também há técnicas receptivas de musicoterapia, onde o paciente/participante aprecia um estímulo sonoro/musical de acordo com a condução do terapeuta. Todos podem ser beneficiados pelo processo musicoterapêutico, as únicas condições desfavoráveis e pouco indicadas para o tratamento são de Epilepsia Musicogênica e casos avançados de surdez.
Como ela ‘atua’ na medicina?
A musicoterapia atua na área da medicina como um tipo de terapia complementar, auxiliando o paciente a melhorar algum aspecto de sua saúde. Vamos usar um exemplo de uma pessoa com o diagnóstico de depressão, nas sessões de musicoterapia ela irá trabalhar as questões emocionais e como ela interpreta as relações que desenvolvem este quadro; o lado expressivo da musicoterapia ajuda a liberar sentimentos guardados e bloqueados, assim como o fazer musical ajuda na produção de neurotransmissores responsáveis pelo sentimento de bem-estar. É válido ressaltar que a musicoterapia atua de forma complementar e o tratamento médico é indispensável, mas com certeza ajuda na resposta ao tratamento medicamentoso.
Como a musicoterapia ajuda no tratamento do Alzheimer?
A musicoterapia é uma das modalidades terapêuticas que melhor atende ao paciente de Alzheimer. Através da identidade sonora do paciente conseguimos resgatar lembranças e refazer a sua trajetória de vida. Todos nós temos uma memória musical (independente se a pessoa estudou música ou não), e no caso da Doença de Alzheimer, essa memória musical é a última que será deteriorada pela doença, fazendo com que o paciente consiga resgatar lembranças e/ou habilidades cognitivas quando essa memória musical é ativada, pois a música ativa o cérebro todo.
A musicoterapia ajuda o paciente de Alzheimer a manter seu quadro cognitivo e a retardar o avanço da doença. É uma terapia muito lúdica que consegue lidar com as dificuldades cognitivas (memória, atenção, planejamento, linguagem) como as alterações de comportamento que são muito comuns nos casos mais avançados. A musicoterapia consegue resgatar a vontade de viver desses pacientes e proporciona o que é mais importante para quem tem um quadro neurodegenerativo : a qualidade de vida.
Você pode apresentar alguns ‘casos’ que mostram a evolução de pessoas que foram submetidas ao tratamento e melhoraram?
Sim, é comum o paciente apresentar algum tipo de melhora depois de fazer o atendimento musicoterapêutico. Nos casos que eu atendo, em especial uma paciente com demência mista (doença de Alzheimer / demência vascular) já em quadro moderado, não estava querendo mais sair de casa e os familiares diziam que ela estava triste e sem engajamento em nenhuma atividade, que vivia aborrecida e queixosa. Quando começou a ser atendida pela musicoterapia conseguiu elaborar essa tristeza e trazer um novo significado para a sua atual condição de vida.
Familiares relataram melhora importante após o primeiro mês que começamos os atendimentos regulares. Hoje em dia ela se mantém bem emocionalmente, conseguiu resgatar sua verdadeira personalidade, está alegre e motivada em realizar outras atividades, mesmo com as dificuldades cognitivas típicas do diagnóstico, que continuam sendo trabalhadas nas sessões para que a paciente mantenha a sua funcionalidade. Outro caso que posso contar é de uma paciente que iniciou os atendimentos em um quadro já avançado da Doença de Alzheimer, o filho procurou os atendimentos pois percebia que o quadro da mãe estava avançando muito rápido e a alteração de humor da paciente era a queixa principal, pois vivia constantemente irritada e gritava durante a noite. O início do processo foi bastante difícil, demorou para que ela criasse vínculo com a musicoterapeuta e começasse a participar efetivamente das sessões. Gradativamente, a paciente foi sendo estimulada pela música e hoje em dia está bem mais calma, conversa adequadamente com as pessoas, os quadros de irritabilidade têm diminuído bastante e o melhor, tem conseguido dormir bem durante a noite, os gritos deixaram de acontecer. A paciente ganhou em qualidade de vida e os familiares também.
“A musicoterapia é uma das modalidades terapêuticas que melhor atende ao paciente de Alzheimer. Através da identidade sonora do paciente conseguimos resgatar lembranças e refazer a sua trajetória de vida. Todos nós temos uma memória musical (independente se a pessoa estudou música ou não), e no caso da Doença de Alzheimer, essa memória musical é a última que será deteriorada pela doença, fazendo com que o paciente consiga resgatar lembranças e/ou habilidades cognitivas quando essa memória musical é ativada, pois a música ativa o cérebro todo. A musicoterapia ajuda o paciente de Alzheimer a manter seu quadro cognitivo e a retardar o avanço da doença”.
Se você quiser acrescentar algo, fique à vontade.
Para a Doença de Alzheimer, a música é fundamental, é um dos únicos estímulos que o cérebro dos doentes consegue processar bem e responder. É uma questão de necessidade, independente da fase em que a doença se encontra, a música sempre será necessária para esses pacientes. O neurologista Oliver Sacks deixou isso claro em seu livro “Alucinações Musicais” no capítulo que aborda especificamente as demências.
É válido ressaltar que os benefícios da música e da musicoterapia são comprovados cientificamente com trabalhos relevantes no meio acadêmico. E o profissional adequado para utilizar a música com esses pacientes é o musicoterapeuta, que vai usar as melhores técnicas para cada dificuldade que o paciente venha a apresentar. Ao cantar e tocar uma música conhecida, que fez parte de um momento importante da sua vida, o paciente resgata essa memória, a emoção do momento vivido e o mais importante – a sua identidade, ele volta a saber quem ele é, e esse processo proporciona paz e bem-estar ao paciente. Portanto, música é uma necessidade para todos que tem o diagnóstico da Doença de Alzheimer.
*Sinapse: sob o aspecto fisiológico,é definida como ‘local de contato entre neurônios no qual ocorre a transmissão de impulsos nervosos de uma célula para outra.