Mortes por demência e Alzheimer cresceram 3.400% em três décadas

Em 1996, 985 brasileiros perderam a suas vidas por conta de demência ou Alzheimer. No ano passado, o número foi de 34.279 mortes

Por Jonatas Martins – Metrópoles

Existe um Brasil que aos poucos está se esquecendo. Fogem das memórias os nomes dos filhos, o sorriso das pessoas que amam e escapa também, dentro do universo encefálico de suas mentes, a vida que decidiram viver. Tudo isso por conta de um inexplicável erro no processamento de certas proteínas dentro do sistema nervoso central.

São pedaços de proteínas que aparecem ainda sem muitas explicações e se tornam tóxicas para os neurônios e sinapses. Desencadeia-se um verdadeiro colapso de memórias e sentimentos. É assim que surgem as doenças demenciais. É assim que mais de 385 mil brasileiros “desapareceram” de si e morreram nas últimas três décadas.

É fundamental que o Brasil passe a se importar com o crescimento do número de vidas afetadas diretamente por conta das doenças. Em 1996, foi apontado que 985 brasileiros perderam a suas vidas por conta de algum grau de demência ou Alzheimer. No ano passado, o número foi de 34.279 pessoas. Isso representa um aumento de 3.380% nas últimas décadas.

Memórias roubadas

O professor da Universidade de Brasília (UnB) Otávio de Toledo Nóbrega, membro da seção do Distrito Federal da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG-DF), explica que o córtex cerebral costuma ser uma das áreas mais prejudicadas pela doenças demenciais, principalmente nas regiões temporais e parietais, na lateral do crânio. A literatura médica aponta também alterações no hipotálamo e no hipocampo.

Áreas que administram parte essencial de quem somos. São algumas gramas de massa cinzenta que conduzem a personalidade e a forma como lidar com as lembranças que construímos durante toda a vida. No entanto, com o desenvolvimento da demência, as regiões são afetadas diretamente. Pode-se, inclusive, morrer sem noção nenhuma do quem tenha sido.

“A ciência até entende bem o defeito que acontece no cérebro para desenvolver Alzheimer, especificamente. A gente sabe que os principais defeitos são bioquímicos, em que proteínas alteradas se acumulam no cérebro. Principalmente, uma proteína chamada beta-amiloide, que se acumula demais e acaba funcionando como substância tóxica dos neurônios, impedindo que as transmissões nervosas aconteçam”, comenta o especialista.

Sobre o aumento exponencial dos casos e mortes por doenças demenciais no país, Nóbrega salienta sobre uma “revolução da longevidade”, causando uma mudança muito drástica e importante na estrutura etária brasileira, representada principalmente pela maior expectativa de vida. Com o maior número de idosos e prolongação da vida, por consequência, há também pessoas mais suscetíveis às doenças demenciais. No entanto, o crescimento das mortes vai além disso.

Também existem outras razões que merecem ser levadas em consideração, principalmente nas falhas em garantir as medidas preventivas, como evitar o sedentarismo e incentivar a escolarização, além de um maior apoio para os familiares e cuidadores. “Lá em 1990, a gente já sabia que ia acontecer. A gente que é estudioso, quem está na área e luta nessas questões, mas sempre tivemos uma dificuldade muito grande de impressionar a classe política brasileira no sentido de acordar para essa realidade e tomar as medidas necessárias”, comenta o professor da UnB.

O médico aponta que é fundamental incentivar uma “cultura gerontológica”, preparando as pessoas para a ideia de que a vida é feita de fases e que todas pessoas vão envelhecer e precisam se preparar para isso. “O que nós estamos entendendo é que o Brasil, infelizmente, é um país que não se preparou para envelhecer. Nós não melhoramos os nossos serviços públicos, que ainda deixam muito a desejar. Nós não enriquecemos enquanto economia, estamos patinando. A gente não adaptou os nossos serviços de saúde, nem de previdência social para poder dar conta de todos esses idosos que virão.[..] Tudo isso, infelizmente, acende uma luz vermelha”, continua.

Com o desenvolvimento do Alzheimer, a costureira Zélia de Avelino, de 84 anos, foi perdendo o costume de anos que tinha com as linhas e agulhas. A filha Verônica se lembra do momento em que percebeu algo de diferente com a mãe: “Eu queria fazer umas roupas para viajar. Aí ela foi comigo, comprou o tecido e, na hora de fazer, não acertava de jeito nenhum como fazer. Eu não entendia como é que não era possível. Ela esqueceu, como é que podia?”.

Foi trabalhando com a confecção de roupas que Zélia garantiu o sustento dos quatros filhos após o esposo falecer. “O meu pai morreu, eu tinha 13 anos. Foi um momento de dificuldade material mesmo. A gente ficou um período sem casa e eu fiquei com ela. Então, ela costurava e eu estava sempre junto. Ela costurava na casa de pessoas. Eu não conseguia dormir longe dela, porque eu tinha medo dela morrer”, conta a filha.

A família vive em Brasília, onde a idosa recebe cuidados por parte de Verônica e outra filha. A antiga costureira foi diagnosticada com a doença há cinco anos e, segundo os familiares, os lapsos de memória vêm se tornando cada vez mais frequentes. Em relação ao Distrito Federal, que é um dos locais com mais mortes proporcionais, havia cerca de 10 óbitos por ano no final da década de 1990. Houve um aumento progressivo anualmente, chegando a um recorde em 2023, quando 626 pessoas perderam as suas histórias em decorrência do Alzheimer ou demência.

A condição de Zélia de Avelino progrediu. A idosa passou a não conseguir manter as lembranças recentes. Por vezes, ela pergunta onde estão os pais e o que está fazendo em uma outra casa . A situação é extremamente angustiante para todos que estão próximos. “É tão triste tudo. A perspectiva, o horizonte do futuro. Quando você recebe esse diagnóstico que sua mãe está com demência, você já sabe mais ou menos qual o caminho que ela vai trilhar e vocês, e quem tá junto também”, menciona a filha. Independentemente das dificuldades, a família luta para garantir dignidade à memória e ao legado deixado pela matriarca.

“Minha mãe é maravilhosa. Eu acho que a pessoa mais boa que eu conheço é a mamãe. E isso não sumiu, né? Não vai sumir. Ela é uma pessoa muito religiosa, de muita fé. Outro dia eu falei : ’A senhora tem medo de morrer?’ Ela disse que não. Perguntei: ‘Mas a senhora pensa na morte?’. A senhora respondeu que às vezes pensa e fica rezando para Deus dar uma boa morte. Ela ainda disse: ‘Mas depois eu penso assim, que não sou melhor que ninguém’. Tipo, o desfecho que Deus dá a ela, ela está de acordo, entendeu? Ela é uma pessoa diferente”, conta Verônica.

Sobrevivendo a duas pandemias ao mesmo tempo

Norma Araújo (foto abaixo), de 81 anos, tem o costume de balbuciar de forma intermitente. O barulho era produzido mesmo quando estava com a boca completamente fechada. Segue fazendo aquele som por horas. Estava cantando. Depois que o Alzheimer começou a se manifestar, a idosa adotou esse hábito nos momentos em que há uma piora na sua condição. Nas situações, ela fala pouquíssimo, mas canta o tempo todo.

As filhas perceberam que era apenas uma música repetindo ao extremo apenas uma frase: “Coração que é bom”. Elas não sabem se é uma canção já existente ou o porquê a mãe ficou com essas palavras na mente. Percebem que a melodia é um mantra, uma maneira de oração.

Regina Araújo, filha da idosa, relembra o começo da doença: “A gente achava que era coisa do dia a dia. Ela esquecia muito a panela no forno, queimou muitas roupas porque deixava o ferro e esquecia de desligar. Achávamos que eram coisas normais”. As coisas só se tornaram mais perceptíveis durante a pandemia de Covid-19.

Em 2020, no início desconhecido da disseminação do coronavírus, Norma contraiu Covid-19 e precisou ficar internada por sete dias e oito noites. Foi um período de grande angústia para a família. Os parentes se revezaram no hospital, lutando para garantir a saúde da matriarca e acompanhando de perto a sua frágil condição. A partir desse momento, o declínio cognitivo se acelerou drasticamente com a “mãe entrando uma e saindo outra”.

A filha lembra do sentimento quando viu sua mãe voltar diferente e saber que ela estava com um quadro demencial: “A gente morre. A gente morre. A gente perde a esperança. A gente acha que fez alguma coisa errada, que está sendo castigado. Isso é muito louco. Porque você fala assim: ‘Puxa vida! Ela vai sofrer e eu também’. Porque não tem melhora, é uma coisa que só vai piorando”. Não era para menos. Eles estavam sobrevivendo a duas pandemias ao mesmo tempo.

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma pandemia se caracteriza pela disseminação mundial de uma doença quando uma epidemia, surto que afeta certa região, se espalha por diferentes localidades. Por conta do elevado crescimento dos casos de demência em vários países, o professor Otávio de Toledo Nóbrega considera que estaríamos vivendo uma pandemia da condição.

“É como se a gente pudesse, sim, dizer que estamos passando por uma pandemia de Alzheimer e que vai se intensificar. Existe uma organização internacional chamada International Alzheimer Association, que junta estatísticas internacionais relativas à frequência do Alzheimer. A instituição estima que há 50 milhões de pessoas afetadas por demência no mundo. No entanto, quando for a 2050, já serão 150 milhões. Ou seja, vai triplicar no curso das próximas duas décadas e meia”, afirma Nóbrega.

Portal Plena Gente+: informação que você usa e abre possibilidades de crescimento pessoal e profissional.   Compartilhe nossas publicações. Comente, curta!  Nós agradecemos!

Siga o PortalPlenaGente+ no Instagram e no Facebook

Portal Plena Gente+

ana.vargas@portalplena.com | Website |  + posts

Jornalista com experiência sobretudo em redação de textos variados - de meio ambiente à saúde; de temas sociais à política e urbanismo. Experiência no mercado editorial: pesquisa e redação de livros com focos diversos; acompanhamento do processo editorial (preparação de textos, revisão etc.); Assistência editorial free lancer. Revisora Free Lancer das editoras Planeta; Universo dos Livros e Alta Books. Semifinalista do Prêmio Oceanos 2020.

Leave a Reply

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *