Quando a seca criou os ‘campos de concentração’ no sertão do Ceará
El País/Marina Rossi
Fugindo da seca do século passado, milhares de pessoas foram confinadas para que não chegassem à capital Fortaleza. Agora, local será tombado como patrimônio histórico
Conceição atravessava muito depressa o Campo de Concentração. Às vezes uma voz atalhava:
– Dona, uma esmolinha….
Que custo, atravessar aquele atravancamento de gente imunda, de latas velhas e trapos sujos!
No romance O Quinze, a escritora Rachel de Queiroz (Fortaleza, 1910) narra a seca histórica de 1915 que castigou o Nordeste brasileiro e descreve parte do que foram os chamados campos de concentração da seca. Embora não fossem campos de extermínio, como logo depois seriam criados na Alemanha, os campos de concentração espalhados pelo Ceará no início do século XX tinham ao menos um objetivo equivalente ao nazista: isolar dos demais a população indesejada, a “gente imunda” que tentava sobreviver à seca do sertão fugindo para a capital.
Desses campos, que no século passado confinaram a fome, a miséria e doenças, pouca coisa sobrou. É o município de Senador Pompeu, uma cidadezinha de quase 30.000 habitantes, a 270 quilômetros de Fortaleza, o único que ainda guarda ruínas daquela época. E se antes era símbolo da pobreza, hoje o local se prepara para ser tombado como patrimônio histórico. A oficialização deve ocorrer com toda pompa e cerimônia até o final do mês na Prefeitura da cidade.
O primeiro campo surgiu em Fortaleza em 1915. Naquele momento, a capital cearense ostentava uma elite de intelectuais e empresários que ainda colhiam os frutos do boom da exportação de algodão do século anterior. Mas junto a essa eufórica burguesia, chegavam à cidade também retirantes da fome, potencializada pela grande seca de 1877. O crescimento de habitantes elevou Fortaleza à sétima maior população urbana no país na virada do século XIX para o XX. E com isso, vieram também medidas higienistas.
Frederico de Castro Neves, professor de História da Universidade Federal do Ceará (UFC), lembra que, além da proximidade às ferrovias, os campos eram instalados sempre ao redor de alguma obra estrutural, o que atraía a mão-de-obra. “O campo estava vinculado a uma obra pública, a uma situação de trabalho”, explica. E Senador Pompeu era um dos municípios que obedeciam a essa arquitetura. Ali, a companhia inglesa Norton Griffiths & Company se estabeleceu na década de 1920 para construir a barragem do açude Patu. As obras foram interrompidas na década seguinte e sobraram somente as construções, como a casa da administração, o ambulatório, estação de trem e a casa das máquinas, hoje, as poucas ruínas que restaram dessa história.
Era ao redor dessa estrutura que viviam, em espécies de barracas, os flagelados da seca. “Aqui nesta janela, era onde eles faziam filas por um punhado de comida”, explica Valdecy Alves, um advogado nascido em Senador Pompeu e que se autointitula “militante dos movimentos sociais”, ao chegar no casarão que era a sede da antiga administração da companhia. “A comida era uma mão cheia de farinha, rapadura, sal, café torrado no sangue de boi para aumentar a quantidade de ferro e, às vezes, uma bolacha”, diz, sob um sol fortíssimo, em meio às ruínas.
Vestiam-se com sacas de farinha, os cabelos lhes eram raspados e viviam submetidos a condições de higiene e limpeza extremamente precárias. Assim, morriam aos montes, de fome, sede e doenças. Os flagelados da seca viviam tão à margem da sociedade, que nem mesmo seus cadáveres se misturavam aos demais. Por isso, a poucos quilômetros da casa da administração fora construído um cemitério somente para essas vítimas. “Não se misturavam os demais mortos da cidade”, conta Alves.
“Senador Pompeu não é Auschwitz”
O período em que os campos existiram foi curto, de apenas um ano – do início de 1932 ao início de 1933, quando voltou a chover. Mas a conta deixada foi grande. Pela dificuldade de encontrar registros oficiais, é difícil precisar a quantidade de pessoas que morreram naquela época. O professor Frederico de Castro Neves calcula que em janeiro de 1933, quando havia sobrado somente quatro dos sete campos, 90.000 pessoas viviam espalhadas por eles. “O maior de todos foi o de Buriti, no sul do Estado, na região do Crato. Ali chegou a ter 60.000 pessoas”, diz. Mas a historiadora Kênia Sousa Rios, também da UFC, relata no livro Isolamento e poder – Fortaleza e os Campos de Concentração na seca de 1932 (Imprensa Universitária) que somente no campo de Ipu, a oeste do Estado, houve registros de mais de 1.000 mortos entre 1932 e 1933.
Castro Neves ressalta porém, que, apesar do nome como ficou conhecida essa história, não é possível comparar os campos de concentração do Ceará aos da Alemanha. “Depois da Segunda Guerra Mundial, quando foi revelado o que acontecia na Alemanha nazista, a expressão ficou muito contaminada como um campo de extermínio”, diz. “Mas Senador Pompeu não é igual a Auschwitz. Aqui, a pessoa recebia uma assistência, que era precária, discutível, mas era uma assistência médica”, afirma. “As pessoas não eram carregadas para o campo, debaixo de violência, embora houvesse uma tentativa de manter aquelas pessoas ali no isolamento”, pondera.
O tombamento do local como patrimônio histórico se junta ao lançamento de um filme, reforçando a importância de Senador Pompeu na história da seca do Brasil. O longa Currais, de Sabina Colares e David Aguiar, mistura documentário com ficção para contar, por meio de seis personagens, as histórias dos campos de concentração.
*Fonte: Marina Rossi – El País
*Foto de abertura: Cemitério do ‘campo de concentração’ em Senador Pompeu, no Ceará: nem mesmo os cadáveres dos flagelados eram enterrados junto aos demais. Henrique Kardozo
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