Qual a relação entre a submissão das mulheres evangélicas à violência doméstica e a interpretação limitada que a maioria dos líderes evangélicos atuais fazem dos textos bíblicos? Veja a opinião da historiadora e antropóloga Lidice Meyer, autora do livro “Cristianismo no Feminino”
Ana Claudia Vargas*
Que o Brasil apresenta índices preocupantes no tópico “violência contra a mulher” já é uma informação bastante divulgada, senão vejamos: segundo o Atlas da Violência 2024, nosso país ocupa a 5ª posição no ranking mundial quando se trata deste triste (e preocupante e revoltante) dado.
Contudo, inserido neste contexto, temos outro índice também alarmante: quando se trata de violência doméstica _aquela que ocorre entre as paredes do que deveria ser um local seguro para as mulheres _ as mulheres evangélicas representam 40% destas vítimas. Além disso, líderes religiosos se envolveram em 462 denúncias de violações nos últimos três anos. E este dado é ainda mais inquietante quando se nota que a abertura de novas igrejas evangélicas, no Brasil, têm sido cada vez maior (21 templos são abertos por dia no Brasil)**.
Mas qual é a relação entre o aumento da violência doméstica entre mulheres evangélicas e a abertura constante de novas igrejas deste segmento ? Para começar, precisamos explicar que as instituições evangélicas têm grande impacto da vida de suas seguidoras. Isto significa que quando uma mulher evangélica é vítima de violência doméstica, de forma geral, ela tende a se calar pois, dependendo dos preceitos da instituição que frequenta, não pode se rebelar e nem denunciar as agressões (físicas, psicológicas, patrimoniais etc.) sofridas. Por sua vez, isto ocorre porque, segundo falas equivocadas de alguns pastores de algumas destas igrejas, uma mulher evangélica precisa se submeter a tais agressões e deve, inclusive, ‘orar pelo homem’.
Na maioria dos casos, existe (por parte dos dirigentes destas igrejas) uma interpretação equivocada da Bíblia que é usada para justificar a submissão da mulher, mesmo em casos de abusos, e a perpetuação desta violência.
“A diferença na fala das mulheres evangélicas em relação às não evangélicas está sempre relacionada às ideias opressoras, como o dever de submissão ao marido a qualquer custo, a obrigação de ter que perdoar o parceiro por seus atos violentos, a culpa por prejudicar sua reputação dentro da comunidade, no caso de vir a denunciá-lo, o medo de ser julgada por estar indo contra a Palavra de Deus. Elas também se sentem culpadas por não orarem o suficiente para que o cônjuge mude de comportamento e, no caso de pedirem o divórcio, julgam-se as responsáveis por destruir a família. (Marília César, Observatório Evangélico, agosto de 2022)”
Mas se o contexto parece muito complexo por si só, a historiadora e antropóloga Lidice Meyer, no seu livro “Cristianismo no Feminino”, procura apresentar por meio de uma análise profunda e minuciosa da Bíblia, abordagens nas quais as mulheres foram/são vistas como protagonistas e não como meras espectadoras ou coadjuvantes em passagens bíblicas notórias.
Os dois primeiros capítulos do evangelho de Lucas são um bom exemplo de como todo o protagonismo das histórias neles narradas é de Maria e de Isabel. No Antigo Testamento, um bom exemplo é a história de Débora e Jael, onde os generais Baraque e Sísera tornam-se meros coadjuvantes frente às duas heroínas. Ainda no Antigo Testamento ressalto a história de Hagar no deserto, a única pessoa em toda a Bíblia que nomeia a Deus. (Lidice Meyer)
Sua visão detalhada e aprofundada desfaz a falsa e errônea ideia (muito em voga atualmente) de que mulher evangélica precisa se submeter à violência doméstica em nome de uma suposta “edificação do lar” . Para Lidice, é comum que textos bíblicos sejam retirados do contexto para justificar a violência contra mulheres que frequentam igrejas deste segmento religioso. Talvez isto também explique porque tantas mulheres evangélicas se calam, se submetam às agressões e permaneçam em relacionamentos abusivos. Por outro lado, é cada vez maior o número de mulheres que não querem e nem vão mais se calar.
Acompanhe na matéria a seguir, a entrevista que a autora concedeu ao PortalPlenaGente+.
PPG+ : Em seu livro você afirma que “textos bíblicos lidos separados de seu contexto cultural, podem ser e têm sido utilizados para perpetuar uma visão doentia sobre a pretensa superioridade masculina (…) e para justificar o cerceamento da participação feminina ativa nas igrejas”. Diante disso, pergunto: atualmente, alguns pastores evangélicos das chamadas igrejas neopentecostais fazem isto de forma deliberada em pregações que visam manter as mulheres em um papel de submissão aos maridos abusivos. Qual a sua opinião sobre isto?
Lidice: Infelizmente a preparação acadêmica de muitos pastores é fraca, sendo muitos destes oriundos de uma má formação escolar e com sérias dificuldades para desenvolver um estudo exegético de qualidade sobre o texto bíblico. Há casos em que pastores são ordenados sem sequer ter frequentado um seminário ou com um rápido curso de formação de obreiros. Devido a esta falha no desenvolvimento acadêmico, estes pastores se limitam a repetir e a perpetuar discursos tradicionais e simplórios. Não há o estudo do texto na língua original, já que o conhecimento do grego é mínimo quando não nulo. Desta forma, opta-se pelo mais fácil: usar da autoridade pastoral para ocultar seu pouco preparo e perpetuar uma relação de superioridade masculina, utilizando-se de textos pinçados da Bíblia fora do contexto, mas como pretexto.

PPG+: Em outro trecho do seu livro você destaca “defendo que podemos encontrar na Bíblia muitas histórias de mulheres que são contadas pelo viés do feminino. (…) Em muitas dessas histórias o protagonismo é totalmente feminino, relegando aos homens o papel de coadjuvantes (…)”. Você poderia citar alguma dessas passagens?
Lidice: Os dois primeiros capítulos do evangelho de Lucas são um bom exemplo de como todo o protagonismo das histórias neles narradas é de Maria e de Isabel. No Antigo Testamento, um bom exemplo é a história de Débora e Jael, onde os generais Baraque e Sísera tornam-se meros coadjuvantes frente às duas heroínas. Ainda no Antigo Testamento ressalto a história de Hagar no deserto, a única pessoa em toda a Bíblia que nomeia a Deus.
PPG+: “Jesus, mesmo tendo sido criado em um ambiente patriarcal e judaizante, agia principalmente por sua natureza divina, sem barreiras em relação aos gêneros”: neste trecho você descreve Jesus como um ser humano livre de preconceitos de qualquer natureza. Como explicar, então, a visão de uma pessoa misógina, preconceituosa e claramente ‘contra’ as mulheres que é difundida por tantos pastores que têm grande influência através das mídias em geral?
Lidice: Alguns pastores estão pregando um Jesus misógino? Se for isto, posso dizer que é impossível que algum pastor consiga transmitir uma imagem misógina de Jesus. A leitura dos Evangelhos revela que Jesus sempre esteve ao lado de mulheres, curando-as, ouvindo-as e sendo por elas servido. Um Jesus misógino teria condenado a mulher adúltera e recusado as unções que recebeu de mulheres em três ocasiões.
PPG+: Em seu livro você também cita passagens bíblicas nas quais as mulheres são protagonistas e não meras espectadoras de situações ali narradas. Você também fala sobre a sororidade natural que existia entre as mulheres. Penso que quando uma mulher sofre abusos e se cala, ou é obrigada a se calar em nome de uma suposta hierarquia familiar, até a sororidade lhe é negada. Como você vê esta situação?
Lidice: Uma das características de um relacionamento abusivo é a quebra dos laços de amizade que a mulher pudesse ter anteriormente à relação. Isto afasta a possibilidade de ajuda sororal, mas não a impede totalmente. Faz parte da natureza feminina o cuidado e a percepção das necessidades do próximo. Assim, é imperativo que as mulheres estejam atentas às outras mulheres que se fecham às amizades para quando necessário se disporem a ajudar ou mesmo denunciar casos de abuso.

PPG+: Você acredita que o protagonismo feminino foi apagado intencionalmente das pregações de certos religiosos neopentecostais porque relegar a mulher à submissão facilitaria (?) o trabalho massivo e massificado de ‘evangelização’ midiática?
Lidice: Não vejo nenhuma relação. Há mulheres evangelistas de sucesso na mídia televisiva e de rádio como Valnice Milhomens e Joyce Meyer para citar apenas dois exemplos.
PPG+: “Infelizmente, algumas igrejas continuam a utilizar os textos de 1Coríntios 14 e 1Timóteo 2 para silenciar as mulheres em seus templos” (pág. 123): você poderia nomear algumas destas igrejas ?
Lidice: Muitas vezes são casos pontuais de algumas igrejas e não representam uma denominação como um todo.
PPG+ : Lilia Sendim, do portal Observatório Evangélico, destaca: “A igreja muitas vezes coloca uma pressão esmagadora sobre casais para manterem relacionamentos mesmo quando há abuso ou insatisfação. A ideia de que “o que Deus juntou, não separe o homem” é prejudicial quando aplicada cegamente, sem levar em consideração os aspectos de segurança e bem-estar das mulheres. Gostaria de saber sua opinião sobre este trecho, por favor.
Lidice: Embora o texto esteja inserido em uma resposta de Jesus a uma questão sobre o divórcio levantada por alguns fariseus (Mt 19, Mc 10, Lc 16), a amplitude do alcance da mensagem não se restringe ao divórcio apenas. Jesus relembra aos fariseus sobre a criação do homem e da mulher em conjunto: “Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher”. E encerra com a afirmação: “Portanto, o que Deus ajuntou não o separe o homem”. Mais do que discutir a viabilidade do divórcio, Jesus está enfatizando que homens e mulheres são iguais perante Deus desde a criação e que isto não deve ser modificado pela vontade do homem (humanidade). Uma leitura simplista do texto não permite que se observe a amplitude deste e acaba por colocar o foco na indissolubilidade do matrimônio. Paulo, por sua vez, será mais claro com relação a isto, colocando o direito do divórcio tanto aos homens como as mulheres (1 Co 7). A violência tanto física como moral ou psicológica é condenada em toda a Bíblia, independentemente de ser exercida por um cônjuge ou um estranho. Desta forma, seria incongruente que um texto da Bíblia autorizasse um cônjuge a exercer de violência com seu parceiro.
PPG+: “E esse discurso é recorrente dentro das igrejas: mulheres devem edificar o lar, ser prudentes, garantir o bem estar dos filhos e dos maridos, mas quem cuida dessas mulheres? (fonte https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/igrejas-evangelicas-e-a-violencia-domestica-um-tema-urgente/) Diante desse trecho pergunto: de que forma seria/será possível quebrar este ciclo de violência em certos ambientes evangélicos? Como se posicionar frente ao patriarcado e ao machismo que imperam nestes setores e voltar a valorizar a presença feminina?
Lidice: Não devemos generalizar que todas as igrejas estejam sob um ambiente patriarcal e machista. A única forma de modificar uma situação destas se dá pelo conhecimento da Palavra de Deus. Enquanto homens e mulheres não se voltarem para a leitura e para o estudo da Bíblia com seriedade e profundidade não se quebrará o ciclo vicioso gerado pela ignorância. A leitura e o estudo da Bíblia sem preconceitos e sem um direcionamento pré-estabelecido mostram que o Criador valoriza igualmente homens e mulheres e os usa em Seu Reino.

PPG+: “É imperativo que lideranças JAMAIS peçam para uma mulher que tem um relacionamento abusivo orar mais. Isto trará mais sentimento de culpa para essa mulher, como se a falta de fé fosse o motivo para ela sofrer violência.” (https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/igrejas-evangelicas-e-a-violencia-domestica-um-tema-urgente/) Acompanho um canal chamado ‘Histórias de Divórcios’ no qual mulheres contam como saíram de relações abusivas. Noto que a maioria delas foi criada em lares evangélicos e/ou cristãos e todas ouviram a frase acima ao procurar ajuda em suas igrejas. Qual sua opinião sobre isto?
Lidice: A oração pode ser um instrumento poderoso de cura emocional e psicológica. Orar não significa uma atitude de culpa e submissão cega. Orar por um parceiro abusivo pode liberar uma forte sensação de perdão tanto do parceiro como de si mesma. Oração não está relacionada a falta de fé, mas a uma maior comunhão com o Deus do amor e do perdão. O que é errado no conselho acima é a naturalização do abuso como se a mulher fosse responsável por manter a paz no lar apesar do abuso. A responsabilidade da paz no lar é do casal. Quando uma parte não age em conformidade com a Palavra de Deus, a paz é quebrada. Embora os casos de abuso em casais evangélicos/cristãos seja algo que nos choque, não podemos acreditar que este tipo de relação negativa só aconteça nos lares cristãos, mas, é uma triste realidade com a qual a igreja precisa aprender a lidar.
PPG+: O relatório “Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil” chega à quinta edição trazendo dados inéditos sobre as distintas formas de violência contra meninas e mulheres brasileiras. O estudo, conduzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pelo Instituto Datafolha, mostra que a violência de gênero nos últimos doze meses atingiu o maior índice desde o início da série histórica, em 2016. Apesar disso, 47,4% das mulheres vítimas de violência grave no ano passado afirmam não terem feito nada diante da agressão sofrida. Mas 6% procuraram a igreja. O diagnóstico, feito com base em autodeclaração, levanta a discussão sobre o papel dos espaços de fé na prevenção da violência e no acolhimento às mulheres. Ainda segundo a pesquisa, uma em cada quatro brasileiras sofreu agressão física por parte de parceiro atual ou ex-parceiro. Dentre as entrevistadas, 42,7% das mulheres que se identificaram como evangélicas sofreram violência ao longo da vida.(fonte https://diplomatique.org.br/violencia-domestica-e-prevalente-entre-evangelicas/) Lídice o seu livro traz uma visão muito dignificante e necessária, nos dias atuais, da mulher. Vemos que apesar de todo o avanço tecnológico e das conquistas femininas em tantos setores, a religião continua sendo uma ‘área’ que prega a submissão da mulher em nome de um ‘lar edificado’ que seria responsabilidade dela. Pergunto: de que forma os pastores, anciãos, líderes religiosos, enfim, podem/poderiam propagar uma visão da mulher como merecedora de estima e respeito se a leitura que fazem da bíblia é baseada em suas próprias visões machistas dos textos bíblicos?
Lidice: Graças a Deus, a pregação desta “submissão em nome de um lar edificado” não é uma unanimidade na Igreja. Há ainda pastores que tratam a mulheres em suas igrejas com respeito e dignidade, sendo exemplos a serem seguidos. Quanto aos que, por ignorância, agem da forma que descreve, a única forma de quebrar o círculo de violência e submissão feminina se dá pelo conhecimento. Enquanto o conhecimento profundo da Bíblia não for buscado, deixando que o Espírito Santo ensine e não os influenciadores evangélicos e teólogos da mídia, infelizmente a Igreja de Cristo continuará a sofrer.
*Editora do PortalPlenaGente+
**(fonte Jornal O Globo_ 18/09/2022)
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