“Ela sempre disse que a nossa maior riqueza é ser livre”, conta Ana. Foi essa liberdade que ela viu a aposentada Enila Guimarães perder pouco a pouco nos últimos anos.
Primeiro, Enila teve ataques de pânico. Depois, crises de ansiedade recorrentes e logo surgiram problemas de locomoção.
Enila foi diagnosticada com uma doença degenerativa que a deixaria com demência e cada vez mais dependente de cuidados.
Coube a Ana ser a principal cuidadora da mãe, uma realidade de vários lares brasileiros. Um levantamento divulgado no ano passado pela Fundação Seade, um sistema de análise de dados, apontou que cerca de 90% dos cuidadores de pessoas com demência em São Paulo são mulheres.
Enquanto a saúde da mãe deteriorava, Ana entrava em depressão. Porém, ela precisava continuar dando apoio a Enila.
Em certo momento, a jovem decidiu que a única alternativa seria levar a mãe para uma instituição de longa permanência para idosos (ILPI), lugares popularmente conhecidos como “asilos” ou “casas de repouso”.
A própria Ana não gostava da ideia e chegou a se questionar se deixar a mãe em uma instituição não seria uma forma de abandono.
“Para mim, era inaceitável. Precisei de muita terapia para entender que (ao tentar manter a mãe em casa) eu estava fazendo mais mal do que bem para ela”, diz.
Especialistas frisam que, apesar de ser um lugar que acolhe idosos sem amparo familiar, as instituições deste tipo também recebem aqueles que têm família por perto — e os parentes podem continuar fazendo visitas e acompanhamentos.
A geriatra Karla Giacomin, que lidera a Frente Nacional de Fortalecimento à ILPI, conta que há muito preconceito sobre esse tipo de internação.
“É fundamental entender que além daqueles que não têm familiares próximos ou romperam relações com os parentes, há situações em que a própria família, por mais que queira, não consegue mais cuidar daquela pessoa”, afirma Giacomin, que é consultora da Organização Mundial de Saúde (OMS) para cuidados de longa duração. “O cuidado faz parte da dimensão humana, é um direito, e esse é o papel dessas instituições.”
Poucas destas instituições são públicas no Brasil. A grande maioria é particular, com valores mensais que vão de R$ 5 mil a até mais de R$ 20 mil – aquelas que são muito baratas, segundo especialistas, podem ser precárias.
Um dos problemas em relação ao tema é a falta de dados oficiais no país.
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), responsável por receber levantamentos de inspeções nesses lugares, enfrenta dificuldades para traçar um panorama nacional.
Já o Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC) disse à BBC News Brasil que está atento à questão e que avalia medidas para auxiliar pessoas idosas.
Mas não tem, ao menos por ora, previsão de expansão das instituições públicas para acolher essa parcela da população.
Os problemas de saúde
O caso de Enila é o retrato de um país que está envelhecendo e ainda busca formas de lidar melhor com seus idosos. A aposentada era descrita como uma mulher independente. Por volta dos 25 anos, casou pela primeira vez e teve o primeiro filho, Mateus.
Depois, Enila se separou. Ela se casou novamente aos 35 anos e teve a segunda filha, Ana, aos 41.
O primeiro filho se mudou com o pai para o interior de São Paulo. Já Ana foi criada com Enila em Paracatu, no interior de Minas Gerais – o pai dela morreu quando a jovem ainda era criança.
“Desde pequena, eu lembro que era sempre eu e a minha mãe sempre”, diz Ana, hoje com 24 anos. Ao longo da vida, Enila foi servidora pública em Minas Gerais. Ela trabalhou como professora e depois no setor administrativo da Educação.
Sua filha conta que ela tinha muitas amigas, uma vida social ativa e muitos planos para o futuro. A aposentadoria era aguardada por Enila como uma fase de novas conquistas e de viagens.
“Ela sempre quis fazer tudo sozinha, sem depender de ninguém”, diz Ana.
Mas, a partir dos 60 anos, a aposentada passou a enfrentar problemas de saúde e começou a cair sozinha com frequência.
Durante o isolamento na pandemia de covid-19, Ana notou que a saúde da mãe piorou cada vez mais.
“Ela não queria sair da cama, não estava se alimentando direito e não tinha forças para levantar sozinha. Ela tinha crises de ansiedade e pânico”, conta.
Ana compartilhou com o irmão a situação de sua mãe, e eles decidiram buscar ajuda especializada. As duas foram morar com ele, que vive na região de Campinas, no interior de São Paulo.
Uma decisão difícil
Após diversos exames, Enila recebeu o diagnóstico: paralisia supranuclear progressiva. Essa é uma doença degenerativa rara do sistema nervoso central que prejudica progressivamente os movimentos oculares voluntários e causa rigidez muscular, além de demência e dificuldades para se movimentar.
Não existe cura, os efeitos são progressivos, e os tratamentos buscam dar uma melhor qualidade de vida ao paciente.
A condição de Enila piorou rapidamente. “Minha mãe começou a usar andador porque as quedas se tornaram ainda mais frequentes”, diz Ana. “Como ela sempre foi muito independente, era muito difícil para ela aceitar que precisava de alguém para coisas básicas, como pegar um copo de água na cozinha ou usar o banheiro.”
A necessidade de ajuda em atividades básicas do cotidiano, como tomar banho ou até mesmo trocar de roupa, faz parte da vida de cerca de 23% de idosos brasileiros, segundo o Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros (ELSI-Brasil) de 2018, um dos levantamentos mais recentes e completos sobre o tema.
Para ajudar a mãe, os filhos de Enila contrataram uma cuidadora, mas ela pediu demissão meses depois, após ser aprovada em um concurso público.
“A gente não conseguiu achar nenhuma outra de confiança”, diz Ana.
Nesse período, a filha se tornou a principal cuidadora de Enila. “Eu tinha apoio de uma moça que limpava a casa, mas ela não era uma cuidadora”, conta Ana.
“Era muito difícil para mim, porque, quando eu chegava em casa, depois do trabalho e da faculdade, minha mãe estava mal e me xingava porque eu não tinha passado o dia com ela. Eu só passava o dia com ela nos fins de semana. Comecei a ficar mal com tudo isso.” Uma das situações mais preocupantes para os filhos de Enila era quando ela tentava se locomover sozinha, se machucava e tinha de ser levada às pressas ao hospital.
Foi o irmão de Ana quem falou pela primeira vez sobre levar a mãe para uma instituição para idosos.
“A gente não tinha mais saída, porque minha mãe precisava cada vez mais de cuidados o tempo todo e não aceitava esses cuidados de ninguém que não fosse eu”, diz Ana.
O preconceito com ‘asilos’
A princípio, Ana resistiu à possibilidade de deixar a mãe em uma instituição, porque pensava que isso poderia ser ruim para a matriarca e ser encarado como um abandono. “Mas por mais que eu quisesse muito, não conseguiria dar os cuidados necessários para ela ficar bem.”
Quando decidiu colocar a mãe em uma instituição, Ana enfrentou as críticas de amigas de Enila.
“Elas não aceitaram e ficaram me mandando vídeos sobre abandono de idosos, falaram que isso era um absurdo”, conta.
“Cresci com essas amigas da minha mãe em casa, sempre as respeitei muito. Por isso, quando me mandaram essas coisas, só fiquei quieta.”
O preconceito e a visão negativa sobre esse tipo de instituição são bastante comuns, dizem especialistas em saúde de idosos.
Mas esses profissionais frisam que esses lugares representam formas de um idoso receber atenção adequada e de maneira profissional.
Falar sobre esses “asilos” ainda é um tabu. Nas redes sociais existem inúmeros relatos de brigas familiares em que um parente quer colocar um idoso que precisa de cuidados em uma dessas instituições, enquanto outros discordam por achar que é uma forma de abandono.
A geriatra Celene Pinheiro, presidente da Associação Brasileira de Alzheimer e Outras Demências, regional de São Paulo (ABRAz-SP), diz que o preconceito com esse tipo de instituição persiste, embora possam ser fundamentais para muitas famílias.
“Muitas pessoas têm uma visão antiga, como se fosse um local apenas para pessoas com vulnerabilidade que foram abandonadas. Mas essa não é a realidade”, afirma a médica.
“Muitos não imaginam, mas as relações entre os familiares, muitas vezes, se transformam positivamente, porque o familiar não vai mais ficar sobrecarregado com os cuidados com o idoso.”
Um quarto dos familiares (25,8%) que precisam se tornar cuidadores deixam de trabalhar ou estudar para se dedicar em tempo integral ao idoso, segundo o estudo da ELSI-Brasil.
Os especialistas pontuam que as instituições para idosos têm sido cada vez mais necessárias por conta das mudanças nas características das famílias.
Entre as principais, estão a inserção da mulher no mercado de trabalho; o envelhecimento da população; a queda da natalidade no país nos últimos anos e a consequente redução do tamanho das famílias.
“Além disso, muitas vezes, cada filho vive em cidades ou até países diferentes”, diz Pinheiro.
Mas apenas cerca de um quarto dos idosos que demandam maior atenção vivem em instituições, de acordo com levantamentos feitos por pesquisadores sobre o tema, aponta Naira Dutra Lemos, presidente do Departamento de Gerontologia da Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia (SBGG).
“Muita gente acha que o idoso vai perder laço com a família, o que não é verdade”, acrescenta Lemos. “Pode acontecer de colocarem o idoso em uma instituição e não ter mais contato, claro, mas não é só isso que ocorre.”
Falta de informações
Sem dados oficiais sobre as instituições para idosos ou quantas pessoas vivem nelas, pesquisadores brasileiros costumam fazer levantamentos por conta própria.
A reportagem procurou o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que disse que não possui essas informações.
No governo federal, o único dado que consta é originado de municípios que encaminham voluntariamente à Anvisa informações sobre cadastros e inspeções nessas instituições.
Mas são poucas as defesas civis municipais que passam esses números à agência. Em razão disso, a Anvisa reconhece que não há um dado oficial sobre o total de instituições desse tipo no país. Em nota à reportagem, a Anvisa aponta que os municípios não são obrigados a enviar os números desse tipo de inspeção.
A agência não descarta, porém, exigir o repasse destas informações no futuro, para dimensionar a situação das instituições para idosos no Brasil.
Ao todo, desde o início de 2023 até o começo deste ano, foram encaminhadas 321 avaliações à Anvisa, enviadas somente por 11 Estados – os demais não encaminharam essas informações, segundo a agência.
Minas Gerais foi o Estado que mais forneceu dados à agência, com 234 relatos. Já o Rio Grande do Sul enviou 52.
Os outros Estados que enviaram informações foram a Paraíba (11 inspeções), São Paulo (6), Paraná (5), Rio Grande do Norte (4), Pará (4), Bahia (2), Goiás (1), Mato Grosso do Sul (1) e Roraima (1).
Por meio dos levantamentos de estudiosos sobre o tema, é possível notar o abismo entre a quantidade de inspeções encaminhadas à Anvisa e a estimativa sobre a quantidade de instituições para idosos no país.
Os estudos de pesquisadores indicam que há pouco mais de 7 mil no Brasil, sendo que 74,6% são particulares, 25,4% são filantrópicas (sem fins lucrativos) e 6% são públicas.
Além disso, há uma grande disparidade regional, apontam os especialistas.
“Pouco mais da metade dos municípios têm ILPIs, 55,62%, e quase metade não têm”, diz Giacomin. “Alguns Estados têm mais, como São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Já outros, como Roraima, Amapá e Acre, têm muito menos.”
Nos últimos anos, os pesquisadores observaram um aumento das instituições privadas pelo país, enquanto as filantrópicas diminuíram.
“Essas particulares não são só aquelas que têm alto luxo, porque, em um terço dessas privadas, são famílias pobres que vão lá e pagam, mas funcionam de forma precária”, diz Giacomin.
E o poder público?
A falta de políticas públicas relacionadas às instituições para idosos contrasta com o envelhecimento do país.
O número de pessoas com mais 60 anos cresceu 56%, de 20,5 milhões no Censo de 2010 para 32,1 milhões no Censo de 2022.
Esse grupo passou de 10,8% da população para 15,8% no mesmo período.
A estimativa no país e no mundo é que esse número aumente ainda mais nas próximas décadas.
“Os estudos sobre envelhecimento falam em um aumento de até 400% na demanda de cuidados de longa permanência para pessoas idosas em países em desenvolvimento, como o Brasil, nos próximos anos”, diz Giacomin. “Ou seja, o governo precisa enxergar que há uma necessidade gigantesca que precisa ser vista e estudada para elencar as principais soluções, porque é uma situação extremamente complexa.”
Para a geriatra, o poder público deveria abrir mais instituições para idosos ou fazer convênios com unidades particulares existentes.
“Além disso, precisa dar um suporte melhor para quem cuida de seus idosos em casa”, acrescenta. Manter um idoso em uma instituição particular pode ser algo fora da realidade financeira da imensa maioria das famílias brasileiras.
“Aquelas com os preços mais baratos, na maioria das vezes, não dão a assistência adequada”, diz Naira Lemos, da SBGG. Nas poucas instituições públicas que existem, as vagas são alocadas de acordo com critérios como vulnerabilidade econômica, ausência de familiares próximos ou se o idoso é vítima de maus tratos.
Enquanto isso, dizem os especialistas, aqueles idosos que precisam de cuidados institucionais e são vulneráveis socialmente, mas têm familiares próximos que se esforçam para dar um suporte, não conseguem vagas nessas instituições públicas e continuam dependendo integralmente dos cuidados dos parentes.
Mesmo sem políticas públicas concretas para aumentar o número dessas instituições públicas, o governo federal afirma que o envelhecimento da população é cada vez mais alvo de iniciativas do poder público.
O secretário Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa do MDHC, Alexandre da Silva, diz à BBC News Brasil que o governo federal busca aprimorar cada vez mais as discussões sobre essas instituições.
“O ideal é que o idoso escolha o lugar para onde ir, mas, dada a nossa desigualdade econômica, (o número de instituições para idosos) é pequeno, para um grupo muito pequeno. Uma ILPI que garanta qualidade sai por R$ 10 mil (mensais) ou mais”, declara.
O secretário defende que as famílias sejam capacitadas para cuidar de seus idosos.
“Queremos qualificar as famílias para esse cuidado, sem naturalizar os cuidados das mulheres. Quanto mais evitarmos a institucionalização das pessoas idosas, melhor para essas pessoas”, afirma Silva.
“Nem sempre é possível, mas o familiar que quiser e puder ficar com idoso, cabe ao município, Estado e governo federal criar meios. Mas, se não tiver outra opção, aí poderia buscar a ILPI.”
A vida na instituição
Ana não viu outra alternativa no caso de sua mãe com o avanço da doença de Enila. Em agosto de 2021, ela contou para a aposentada que a levaria para uma instituição.
“Ela chorou, mas conversei didaticamente, expliquei que a gente não conseguia mais cuidar dela em casa”, conta. A conversa foi difícil, admite Ana, mas Enila concordou.
Os especialistas dizem que esse diálogo com o idoso é importante para que a pessoa entenda a importância de ser levado para uma instituição.
Eles pontuam ainda que o período de adaptação pode ser difícil e, em alguns casos, pode ser necessário mudar para outro local.
Ana visitou cinco instituições em Campinas até encontrar uma que considerou adequada.
“Em alguns desses lugares, eu entrava e sentia uma energia pesada, e os lugares eram muito simples, e não sentia que daria o conforto que minha mãe precisava”, conta. “Eu prezava muito pelo conforto dela, queria colocá-la em um lugar legal e agradável.”
Ana definiu alguns critérios: um local limpo, com profissionais qualificados e que pudesse receber visitas com frequência.
“Meu irmão recebeu uma indicação e fui conhecer, fiz entrevista com a responsável, vi um jardim que brilhou os meus olhos, porque a minha mãe sempre gostou da natureza. Escolhemos esse.”
Em meados do ano passado, Enila pediu para mudar de instituição.
“Ninguém tinha feito nada para ela, mas ela não queria mais ficar lá”, explica Ana.
Desde junho de 2023, Enila vive em uma nova instituição. “Ela faz fisioterapias em grupo, pintura, charadinhas e tem várias ações bem legais”, diz Ana.
“Não estar em casa é algo que ainda mexe muito com ela – e com a gente também. Mas sinto que hoje ela entende que precisa estar lá para ser cuidada e para as pessoas a ajudarem.” A aposentada tem hoje 65 anos, já não fala mais e precisa de cadeira de rodas para se locomover.
Ana sente saudade, mas diz que está mais tranquila sobre a decisão de deixar Enila em uma instituição.
Ela continua visitando a mãe e a leva para passear sempre que possível.
Meses atrás, uma das melhores amigas de Enila visitou a aposentada na instituição.
Foi um momento marcante, porque essa amiga havia criticado Ana no passado por ter deixado a mãe em uma instituição.
“Ela chorou e me pediu desculpas. Disse que estava errada, porque viu que eu continuo dando carinho e amor para a minha mãe.”
Recentemente, Ana retomou um sonho que havia deixado de lado por conta da atenção que precisava dedicar à mãe: está planejando um intercâmbio para trabalhar como babá nos Estados Unidos.
“Não me formei em uma faculdade porque desisti da que eu havia começado e vejo que preciso começar a construir a minha vida”, diz. “Tenho que ter uma vida independente dela, porque senão, quando ela não estiver mais aqui, não sei o que pode acontecer comigo.”
A jovem está confiante que a instituição e o seu irmão darão os cuidados necessários no período em que ela estiver fora do país.
“Ela não vai ficar desamparada. O intercâmbio é por mim e também por ela, que me criou para ser uma pessoa livre.”
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