Por Pedro Barreto Pereira* – Jornalistas Livres
Mais um jovem negro é morto pela Polícia Militar do Rio de Janeiro. Uma notícia que já não causa mais surpresa, ou mesmo comoção. A tragédia cotidiana carioca tornou-se uma ferramenta administrativa de governos autoritários. Em tempos eleitorais, com ainda mais frequência. O sangue negro rende votos daqueles que acreditam que estarão mais seguros assim.
O secular genocídio negro é uma tradição brasileira, perpetrada pela instituição policial a serviço do Estado e da elite branca. Sua operação é legitimada jurídica e discursivamente.
Jurídica, através dos atenuantes concedidos pelos tribunais, pela ausência de investigação desses homicídios, pelos “excludentes de ilicitudes”. Discursiva, por meio das narrativas “isentas” de articulistas, repórteres e apresentadores, que se eximem de contextualizar histórica e socialmente a necropolítica em curso há cinco séculos neste país que ainda não lidou com o seu passivo colonial e escravocrata.
Na cobertura da barbárie ocorrida na Lapa, na noite do último dia 18 de julho, o apresentador de um telejornal policialesco bradava: “Olha lá: aquele ali não é um cidadão de bem. É um vagabundo”, enquanto as imagens mostravam um cidadão negro, escondido atrás de um dos pilares dos Arcos, arremessando uma pedra nos policiais fortemente armados. A cobertura jornalística do referido telejornal é feita quase toda à distância e narrada pelo apresentador, confortavelmente localizado em um estúdio refrigerado. Não ouvimos declarações de nenhuma testemunha, parente, ou amigo da vítima. Apenas os berros do âncora: “Agora a polícia vai pra cima!”, clama, antes do intervalo comercial, que anuncia mais um produto milagroso, ou a próxima novela bíblica.
Em áudio gravado por um jornalista que esteve no local, uma moradora da ocupação onde o jovem foi morto denuncia as violações cometidas pelos policiais. “Aqui não existe milícia. Aqui existe trabalhador. Se é traficante ou não, nós não quer (sic) saber. É família. Se um escolheu ser polícia e o outro escolheu ser traficante, o problema é deles. Mas não pode esculachar a família de ninguém. Não é assim não. Mais um sangue derramado, não só aqui, como em todas as favelas”. Outra voz, de um homem, relata: “Chegou em carro descaracterizado, sem distintivo, sem farda de polícia, sem mandado, já veio na maldade de matar mesmo, igual em Manguinhos”.
A poucos quilômetros dali encontra-se o Cais do Valongo, local onde desembarcaram aproximadamente 1 milhão dos cerca de 4 milhões de africanos em condição de escravidão que chegaram ao Brasil. A abolição da escravidão não indenizou, nem reparou os males causados pelos 350 anos de escravidão neste país. Tampouco houve um julgamento dos escravocratas, como ocorreu com os oficiais fascistas em Nuremberg. Ao contrário. As famílias que se beneficiaram com a tortura e morte de negros e negras mantiveram seu poder político e econômico até os dias de hoje. Estão aí, em altos cargos da República, liderando grandes empresas, emprestando seus nomes a ruas e avenidas.
Mas a resistência também permanece. Palmares caiu depois de mais um século de luta. A memória de seus heróis, contudo, não morreu. Ela esteve presente nas revoltas populares, encarnada nos malês Luiza Mahin e Pacífico Licutã; na Sabinada, através de Francisco Sabino e João Carneiro da Silva; na Balaiada, de Manoel Balaio e Negro Cosme; em Canudos, com os seguidores de Antonio Conselheiro; com João Cândido, na Revolta da Chibata; no Cangaço de Lampião e Maria Bonita; com Marielle Franco e tantas e tantos outros que caíram resistindo, não sem antes deixar seu exemplo de luta e esperança para seu povo. A voz dos moradores da Rua Joaquim Silva é a voz dos mártires do povo negro, que exigem paz e liberdade. E nenhuma política de segurança pública trará paz, nem será eficiente enquanto não forem elaboradas, considerando todos os séculos de dor e sofrimento do povo negro deste país.
* Jornalista, doutor em Comunicação e autor do livro “Notícias da pacificação: outro olhar possível sobre uma realidade em conflito” (Editora UFRJ).
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