BOMBARDEIOS NA FAIXA DE GAZA: UMA TRAGÉDIA NUNCA VISTA PELA HUMANIDADE

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Debaixo dos escombros de Gaza…

Os esforços de Israel para destruir completamente a população palestina e expulsar aqueles que sobrevivam foram planejados, e sua determinação para implementá-los agora parece implacável. Esse não precisa ser um destino imutável

A Assembleia Geral das Nações Unidas votou pela segunda vez, com uma esmagadora maioria, a favor de um cessar-fogo imediato em Gaza. No entanto, Israel está determinado a continuar a invasão terrestre, o bombardeio de Gaza e a empurrar a já sitiada e vulnerabilizada população para a fronteira com o Egito, numa tentativa de forçar uma limpeza étnica massiva.

Debaixo dos escombros de Gaza já existem mais de 20 mil palestinos mortos pelos bombardeios, assim como as almas daqueles que sobreviveram e têm que, a cada amanhecer, achar a coragem para encarar mais um dia no terrível genocídio que está em curso. Enquanto isso, todas as agências da ONU alertam que seus esforços para dar suporte à população local estão colapsando.

Os esforços de Israel para destruir completamente a população e expulsar aqueles que sobrevivam foram planejados, e sua determinação para implementá-los agora parece implacável. Esse não precisa ser um destino imutável.

Palestino carrega uma vítima no local dos ataques israelenses contra casas no campo de refugiados no norte da Faixa de Gaza (Foto: Abed Sabah/Reuters)
Palestino carrega uma vítima no local dos ataques israelenses contra casas no campo de refugiados no norte da Faixa de Gaza – (Foto: Abed Sabah/Reuters)

No entanto, isso depende não só da determinação dos palestinos em Gaza, mas também da capacidade de povos e governos, especialmente no Sul Global, de fazer jus à ameaça que o genocídio israelense e os seus 75 anos de apartheid colonial significam não só para a Palestina, mas para a humanidade.  É urgente que o Sul Global construa alianças capazes de desenvolver ações efetivas para alcançar o cessar-fogo agora e criar mecanismos para parar o genocídio, desmantelar o apartheid e responsabilizar os envolvidos.

UM EXPERIMENTO PARA CONSIDERAR A TODOS NÓS DISPENSÁVEIS

Os dois meses de genocídio desenfreado e televisionado, apoiado pelos Estados Unidos e pela Europa, não só devastaram Gaza, mas também destruíram os últimos resquícios de credibilidade das salvaguardas da lei internacional e do chamado sistema de “governança global” que o Ocidente criou depois da Segunda Guerra Mundial, supostamente para prevenir guerras e genocídios.

O Conselho de Segurança da ONU mais uma vez mostrou sua incapacidade e falta de vontade de fazer qualquer coisa de útil. O Tribunal Penal Internacional (TPI) e seu promotor, Karim Khan, que esteve intensamente engajado em turismo de desastres, viajando pela região sem tomar atitude nenhuma, provaram que só estão dispostos a agir caso seja do interesse do Ocidente. Por mais que nunca se deva deixar de ter esperança, existem poucas chances de os membros da atual Assembleia dos Estados Partes, que supervisiona o TPI, pressionar pela mudança necessária. A União Europeia confirmou que é um cúmplice maleável para qualquer crime apoiado pelos Estados Unidos.

O verniz de respeito pelos direitos humanos e por um mínimo de ética se foi. Até 7 de outubro, quando as potências do Ocidente apoiavam ou travavam guerras, os políticos e a mídia mainstream se sentiam na obrigação de tentar nos convencer  que estavam civilizando aqueles que estavam bombardeando, liberando as mulheres de seus opressores enquanto destruíam suas famílias e assassinavam seus entes queridos, ou defendendo minorias ou outros grupos com os quais não se importavam até aquele momento e que esqueceriam logo depois. Dessa vez, nós simplesmente temos que apoiar um genocídio brutal, fim de história.

O Ocidente está usando essa oportunidade para criar uma aceitação geral da legitimação de violência e crimes contra a humanidade. O presidente colombiano, no início do massacre em Gaza, tweetou “Gaza é apenas o primeiro experimento para considerar a todos nós dispensáveis”. O regime genocida e colonial por assentamento de Israel pode virar um modelo a ser emulado por aqueles no poder, onde e quando for necessário.

APOIO SEM IMPACTO SUFICIENTE

Um bombeiro palestino caminha entre as chamas do incêndio. O depósito de combustível do local foi atingindo por bombas, que cortaram a energia da região Foto: MOHAMMED SALEM / REUTERS

No mesmo período, as pessoas têm se mobilizado em movimentos de solidariedade internacional de escala sem precedentes, e Estados no Sul Global têm se atrevido a falar e agir. Essas são as oposições de hoje à escalada colonial a que temos assistido.

A África do Sul fechou sua embaixada em Tel Aviv, Chile, Colômbia, Honduras, Chad, Turquia e Jordão convocaram seus embaixadores e Belize e Bolívia cortaram relações diplomáticas com Israel. Cinco Estados –  África do Sul, Bangladesh, Bolívia, Comores e Djibouti –  encaminharam os crimes de Israel para a promotoria do TPI, citando genocídio e apartheid. Declarações energéticas foram feitas por muitos líderes e organismos regionais na África, Ásia e América Latina. O fato de que, em 27 de outubro, apenas oito Estados do Sul Global votaram contra a resolução da Assembleia Geral da ONU por um cessar fogo, e que mais de 100 Estados, principalmente da Ásia, África e América Latina co-patrocinaram a segunda tentativa do Conselho de Segurança da ONU de aprovar uma resolução pelo cessar fogo são outros indicadores de apoio.

As ações do Sul Global em apoio aos direitos dos palestinos têm crescido, especialmente desde o começo deste ano, com a escalada das agressões por parte do governo de extrema-direita de Israel. Apenas esse ano, o representante de Israel foi escoltado para fora do encontro dos chefes da União Africana por seguranças depois da confirmação de que ele não tinha status de observador. A copa do mundo sub-20 de futebol também foi realocada quando o governo da Indonésia se recusou a deixar o time israelense jogar no país.

E, no entanto, em face do genocídio em Gaza essa solidariedade parece ainda não ter o impacto necessário.

Em outros momentos, como durante o processo de descolonização e a luta contra o apartheid na África do Sul, o Sul Global foi capaz de alavancar seu poder na Assembleia Geral da ONU e em outras instituições da mesma organização para defender os princípios de anti-colonialismo, anti-racismo e outros interesses em comum. Desta vez, durante os dois meses de genocídio explícito, a Assembleia Geral se reuniu apenas uma vez para passar uma resolução com pouco efeito e alcance. O comitê da ONU que lida com questões de descolonização, direitos humanos e segurança internacional não produziu nada de relevante.

ORGANIZAÇÕES REGIONAIS NÃO OUSARAM TOMAR NENHUMA AÇÃO.

Lidando com um processo de normalização e com monarquias e ditaduras irresponsabilizáveis, a Liga árabe, que promoveu um embargo do petróleo há 50 anos atrás, parece incapaz de tomar qualquer atitude efetiva.

A Organização da Cooperação Islâmica (OCI) produziu uma declaração razoável convocando o fim do armamento de Israel e ação do TPI, mas não se comprometeu com nenhuma ação concreta que seus membros pudessem tomar. Isso deve continuar enquanto se mantiver a premissa debilitante de que todos os esforços da OCI devem ser liderados pela Autoridade Palestina e pelos países árabes, apesar de outras nações terem mais do que o suficiente força política, econômica e diplomática.

A União Africana não tem tomado nenhuma ação para impulsionar sua resolução para eliminar o Sionismo, o colonialismo e o apartheid.

Organizações regionais da América Latina, como o Mercosul, a UNASUL ou a Organização dos Estados Americanos, ou estão debilitadas ou são instrumentos dos interesses dos EUA. O Brasil está flagrantemente ausente como articulador de coordenação e consensos no continente. O presidente Lula chamou as ações de Israel em Gaza como genocidas, mas depois encontrou o presidente israelense com normalidade durante a COP28. Enquanto a sociedade civil e setores do próprio governo brasileiro pedem ações para conter o genocídio em Gaza, a famosa “política externa altiva e ativa” de Lula, que caracterizou seu primeiro mandato como presidente, está ausente. A coordenação regional simplesmente não aconteceu.

O PODER ESTÁ NA UNIÃO

Existem diversas razões pelas quais o Sul Global tem sido incapaz de encontrar a unidade e ter o impacto necessário para frear o genocídio que Israel está cometendo.

Um deles é que o primeiro ministro israelense, Benjamin Netanyahu, líder do genocídio, começou a intensificar relações com os países não-ocidentais já em seu primeiro mandato em 1996. Desde então Israel foi capaz de criar laços de cumplicidade especialmente na África, mas também na Ásia. Eles são mantidos pela sedução das armas e tecnologias de vigilância testadas em palestinos e por esquemas israelenses de propaganda e corrupção. Os esforços de normalização com o mundo árabe feitos por Netanyahu deram frutos com os Acordos de Abraão.

Um segundo elemento é o mantra dos países do Sul Global, que prega que suas políticas externas devem se pautar pelo pragmatismo, já que seus países não podem se dar ao luxo de fazer “ideologia”. Enquanto nunca foi claro como o desprezo pela lei internacional, pelo direito de autodeterminação, pelas lutas anticoloniais e pelos direitos humanos em geral podem ser pragmaticamente benéficas para Estados sem grandes poderes militares, é agora mais evidente que nunca que essa falsa dicotomia tem que terminar.

A falta de liderança palestina em um nível oficial claramente tem um papel nisso. A Autoridade Palestina está acompanhando as convenções estadunidenses. Decidida a ganhar com o genocídio israelense, ela espera voltar ao poder na faixa de Gaza devastada, enquanto governos ao redor do mundo discutem o que fazer. Isso é um problema, mas não uma desculpa boa o suficiente para não agir. Quando defrontado com crimes contra a humanidade todos os Estados têm obrigação de agir para prevenir e encerrá-los.

Ao mesmo tempo, fica evidente que os espaços de coordenação no Sul Global têm uma fraqueza em comum no caso de uma crise como o genocídio que Israel promove em Gaza: são construídos com base em considerações regionais e econômicas, enquanto aspirações políticas e questões de paz e da lei internacional são deixadas de lado.

Quando o Movimento dos Países Não Alinhados foi criado, a luta contra o colonialismo era um objetivo em comum que permitia que países agissem juntos. Isso possibilitou que o Sul Global pressionasse pelo estabelecimento da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento para lidar com a urgente questão da descolonização econômica.

Os Estados que se uniram na Organização da Unidade Africana, com o objetivo declarado de erradicar o colonialismo e a discriminação racial tiveram um importante papel em guiar as ações da ONU contra o apartheid, por exemplo através do Comitê Especial da ONU Contra o Apartheid. Durante um tempo o Mercosul teve a aspiração política de usar a integração econômica regional para construir autonomia e finalmente deixar de ser o quintal dos EUA.

Muitos dos agrupamentos multilaterais liderados pelo Sul Global hoje, do G77 aos Brics, entre outros, têm sido capazes de barrar negociações devastadoras da Organização Mundial do Comércio, prevenir acordos debilitantes de livre comércio e construir alternativas financeiras.

No entanto, em face de um desafio político como o apartheid e o genocídio israelense, eles não se mostram tão capazes. A reunião extraordinária dos Brics sobre a questão palestina terminou sem nenhuma proposta de ação. Quando a guerra na Ucrânia começou, o Sul Global foi capaz de evitar ser empurrado para o campo dos EUA e da Otan. No entanto, isso foi mais simples, tendo em vista que foi uma recusa. O que precisamos agora é ação proativa.

É aparente que simplesmente não temos a estrutura diplomática que possibilite a ação nesse momento de crise.

CRACKS IN THE WALL (‘RACHADURAS’)

Defrontados com o novo paradigma que Israel está moldando para o Ocidente às custas do povo palestino, precisamos de mais impacto, mais ação, mais união. Agora. Precisamos encontrar uma maneira de avançar através das rachaduras do muro de injustiças a nossa frente e criar o poder que precisamos.

Hoje as elites ocidentais tentam destruir o sistema baseado na lei internacional e inaugurar uma era na qual aqueles que têm o poder estão acima do direito, com atrocidades servindo para dissuadir opositores. Elas fazem isso porque seu controle sobre o poder está desaparecendo, não porque sua dominação está garantida.

Os EUA estão vivendo uma crise financeira e social, arriscando a inadimplência a cada seis meses, incapazes de lidar com uma desigualdade crescente e lenta, mas constantemente perdendo sua hegemonia. Em menos de dois anos os EUA sofreram a perda militar profunda ao retirar suas tropas do Afeganistão, e tiveram que aceitar que a China negociou com sucesso o reestabelecimento de relações entre o Iran e a Arábia Saudita, remodelando a dinâmica no Oriente Médio em oposição aos interesses americanos.

O atual governo de extrema-direita israelense jogou o país em uma crise socioeconômica e política que coloca uma parte da sociedade contra a outra e arrisca dar fim à “nação startup”.

Nem os EUA nem Israel têm uma estratégia de saída do genocídio, muito menos um plano para o futuro.

Por mais doloroso e enfurecedor que seja pensar que esse terrível genocídio contra o povo palestino está sendo levado a cabo sem nenhum objetivo claro e atingível, mas como uma reação da supremacia colonial diante de sua perda de poder, isso abre espaço para pensar nossas iniciativas e nos dá esperança de que eventualmente a justiça possa prevalecer.

Em um momento no qual a própria possibilidade de direitos humanos e do direito internacional está em jogo, precisamos de mais liderança política e de iniciativas mais cuidadosamente coordenadas. Desafiar as estruturas de poder existentes é crucial, mas não responde à necessidade de ativar mecanismos políticos efetivos que possam responsabilizar esses regimes e atores que parecem decididos a enterrar o direito internacional e os direitos humanos debaixo dos escombros de Gaza. Os governos do Sul Global que estão prontos para se mobilizar pela Palestina devem iniciar a avançar essas ações.

Só então eles devem encontrar apoio entre o crescente número de oficiais e políticos do Ocidente que começam a romper fileiras com a política de apoio incondicional ao genocídio, tendo em vista que isso pode ser insustentável no longo e médio prazo para sua própria hegemonia colonial.

Enquanto nas questões de neocolonialismo econômico e globalização, os governos no Sul Global devem contar, pelo menos parcialmente, com o apoio do capital nacional, muitas das elites econômicas e financeiras da América Latina, África e Ásia acreditaram na propaganda israelense de que o país seria um parceiro no desenvolvimento ou simplesmente não veem como defender o direito internacional traria benefícios a eles.

Garantir que os governos mesmo assim se movam na direção certa, usando mecanismos existentes ou explorando novos caminhos, é portanto, mais do que nunca, uma responsabilidade das pessoas que estão nas ruas. As pessoas são a esperança que resta à Palestina.

Apenas quando as redes de justiça climática, os movimentos contra as dívidas, os camponeses, as organizações indígenas, os movimentos feministas e todos os outros movimentos que pressionam seus governos para desafiar a exploração e as injustiças dentro dos seus próprios países se juntem para defender a humanidade contra o genocídio e o apartheid israelense seremos capazes de construir o poder do qual precisamos.

Se não agora, quando?

*Jamal Juma’ é o coordenador geral da Campanha Palestina de Base Contra o Muro do Apartheid. É parte da secretaria nacional do Comitê Nacional Palestino de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BNC), a organização guarda-chuva promovendo a chamada pelo BDS. Nasceu e vive em Jerusalém.

*Maren Mantovani é a coordenadora de relações internacionais da Campanha Palestina Contra o Muro do Apartheid e a consultora internacional da Coalizão de Defesa da Terra, uma rede de movimentos sociais palestinos. Faz parte da secretaria internacional do BNC.

*Tradução: Beatriz Kalichman e Flávia Odenheimer, do Vozes Judaicas por Libertação. 

Edição: Equipe Plena/Foto de abertura: divulgação não creditada

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