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Leia um dos contos do livro:
Doze
“Não quero crescer nem agora, nem amanhã, nem nunca!” A poeira da rua é fininha, entra nos olhos e a gente não enxerga mais nada. O vento que a levanta e a dispersa pelo ar leva para longe essa tarde, esse tempo, essa vida de hoje, esse corpo imaculado do presente, certa inocência tênue que se parece com o vento que apenas envolve, sem tocar, a paisagem de muitos matizes daqui: desde estas árvores enormes de troncos fortes como rochedos e copas frondosas às flores mais frágeis e singelas, aquelas que alguns pisam sem sequer perceber.
Pois este vento pode ser rude ou imperceptível mas é, sobretudo, verdadeiro, como tudo o mais que existe dentro desse instante (o mínimo e pulsante momento que parece talhado na exatidão que tudo mais deveria ter: esta menina, a vida que a define e os sonhos da noite e do dia que ela tece, ainda que, nem de muito longe, saiba).
Ela, no auge dos seus doze anos, afirma com uma certeza genuína e franca – ela também é criatura talhada na exatidão, como o vento – e fincada no incerto _ porque como ele, ela também se dispersa e vaga por aí _ apenas isso: que não quer crescer. Seu corpo é provisório como os devaneios provocados pelo frescor deste vento quando seus amuos vindos, não se sabe de onde, encontram pelo caminho certas pessoas mais emotivas e dadas a nostalgias; mas ela é assim, desse jeito inocentemente belo e por isso, tão graciosa, somente hoje; essa leveza que inspira sonhos juvenis que ainda estão sendo sutilmente construídos e por isso vai demorar para que sejam postos à prova. Isso ainda é suposição e essa incerteza alivia quem a vê correndo em meio à poeira da rua, a cabeleira solta, as pernas fininhas, e pensa “essa menina poderia ser pássaro, nuvem ou pétala de flor, qualquer flor…”.
Seu corpo é magrinho como uma vara de bambu (e o irmão faz questão de alardear isto todo dia, para irritá-la), seus cabelos escorridos pela “cara abaixo” estão sempre esvoaçando à frente do rosto como se quisessem se libertar, e seus olhos estão sempre perdidos lá, entre os montes azuis-esverdeados e lá, mais distantes, além; nos vastos céus de cores sempre misturadas e nunca definíveis que cobrem aquele seu mundo.
E quando ela ri a gente acha que todas as mulheres deveriam parar de crescer aos doze; porque é bonito de uma beleza entranhada entre a adolescência que apontará dali a pouco e a infância, que ainda persiste numa covinha que surge inesperada nas bochechas sujas ou no olhar que se surpreende diante de atrocidades grandiosas como o encontro de formigas e abelhas pisoteadas no caminho entre a horta e o quintal.
Hoje de manhã ela acordou e ouviu um barulhinho metálico e ela ainda sonhava e por isso custou a se desvencilhar do sonho; era ainda tão cedo mas o barulhinho parece que a chamava convidando-a a se por de pé rapidamente e a correr para descobrir sua origem. E então ela limpou os olhos, jogou para lá os restos pegajosos do sonho inacabado; a casa escura, a porta da sala entreaberta, um fio de luz alongado no chão, seus pés avançando para a porta ensolarada – a cidade cintilava dentro do dia real; sim, aquilo tudo era real _ a névoa do outono pousada sobre o arremedo de um jardinzinho em construção e ela finalmente descobrindo de onde vinha o barulho como quem encontra calmamente o segredo de toda uma vida: pois era o pai que, no jardim, plantava novas mudas de suspiro e batia com a enxada nos cascalhos mansamente, mas tão mansamente, que até a tirou de seus sonhos de menina de doze anos.
Sentou-se no passeio cimentado, pés descalços sobre a terra orvalhada e ficou olhando para o pai e ele a olhou e sorriu e ela pensou “Deus ajude que eu pare de crescer agora! Deus…”
As mudinhas do suspiro rosa estavam murchas, pendentes e ela ficou com medo de que sequer aguentassem até o final do dia mas elas agüentaram sim, até o entardecer, e resistiram muitos dias mais e se tornaram, anos depois, um matagal que precisou ser cortado porque a mãe começou a achar, sabe-se lá porquê, que suspiros eram flores ‘de cemitério’; mas não avancemos nos dias pois que, agora, a menina está sentada na calçada, ela tem doze anos somente e acha que seu pensamento – se ela pensar muito e se ela se esforçar e até fechar os punhos com ardor _ poderá deter as horas e os dias e quem sabe, poderá fazer com que aquilo que move o tempo, se detenha e apenas, se detenha.
Porque esta menina quer ser menina de doze anos para sempre: ela diz que não quer seios pontudos, não quer que os homens a olhem de maneira diferente (com ‘olhos de fome’, como diz tia Francisca de um jeito pensativo e meio assustador), quer ser assim, magrinha e levezinha como uma pena de galinha d’angola que se soltou e voou pelos ares livremente sobre quintais, povoados, pastos, pontes, córregos, casas, igrejas e praças.
Olhando a manhã que avança, uns restos daquele sonho inacabado ainda nos olhos – mas ela já sabe que poderá retomá-lo: às crianças ainda é dado este poder _ os pés fincados na terra avermelhada e dura; as montanhas ao redor cobertas da neblina dos fins de tarde adquirem tons lilases que depois vão se alternando lentamente até que desaparecem sob a escuridão noturna _ ela tece mistérios caladinha e tensa como são os que vivem a meio caminho entre os sonhos e as realidades.
À tarde haverá as brincadeiras na rua, as caminhadas pelos quintais vizinhos – os bosques densos nos quais ela e os outros meninos e meninas andam sobre regatos de águas geladas caçando borboletas extraordinárias e desbravando terras perigosas – haverá todo um universo imaginário a ser verificado e nomeado para que, depois, fique pra sempre na memória da menina: a matéria da resistência.
Quando a noite chegar vagarosa e pacífica, quando a grande colcha estrelada deixar que se enxergue apenas o topo dos morros e pousar mansamente sobre as casas e as ruas da sua cidade, a menina olhará pela janela e verá bem mais que estas luzes que agora cintilam aqui e ali como pequenas lamparinas parecidas com aquelas que a vó Elidia acende quando chove muito e caem raios dos céus e a cidade fica sem luz nos postes e dentro das casas _ é que para ela, exata nos seus doze anos, tudo é, ainda, permitido.