Mortalidade associada à doença diminui esperança de vida de 77 para 75 anos; Rio e Porto Alegre registraram mais mortes que nascimentos em 2020
CAMILLE LICHOTTI- Revista Piauí
A pandemia de Covid-19 roubou, sozinha, quase dois anos da esperança de vida no Brasil. O índice crescia sem parar desde 1945 – em média, a expectativa de vida aumentava cinco meses a cada ano. Era um sinal da melhoria nas condições básicas de vida, que aumentavam a longevidade da população. Mas esse quadro se reverteu em 2020, ano em que 195 mil brasileiros morreram por Covid-19. A estimativa era de que o índice chegasse a 77 anos em 2020, mas, por causa da Covid-19, ficou em 75 anos. Em algumas unidades da federação o retrocesso foi ainda maior: Distrito Federal, Amazonas, Amapá, Roraima e Espírito Santo tiveram redução de mais de três anos na esperança de vida ao nascer.
Esses resultados constam de estudo publicado em pré-print por pesquisadores de Harvard, Princeton, Universidade do Sul da Califórnia e Universidade Federal de Minas Gerais. O trabalho mediu o impacto direto das mortes por Covid-19 na demografia brasileira. E a conclusão é clara: a mortalidade pela doença no país tem sido “catastrófica”. “Nossa estimativa ainda foi extremamente conservadora”, explica a demógrafa Marcia Castro, chefe do departamento de Saúde Global e População da Universidade de Harvard e líder do estudo. “O nosso cálculo para este estudo considerou apenas os óbitos por Covid-19, mas o excesso de mortalidade observado no Brasil é muito maior do que só os óbitos pela doença.” Segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o Brasil teve 275 mil mortes acima do esperado em 2020 – 80 mil a mais que os registros de morte por Covid-19. Esse excedente de mortes pode ser, em parte, atribuído ao colapso do sistema de saúde, consequência direta do descontrole da pandemia.
Castro e outros pesquisadores já iniciaram um novo estudo, agora para calcular o impacto do volume total de mortes na expectativa de vida. “Ainda não há dados para o mundo todo, mas certamente o Brasil vai estar entre os países com maior redução”, prevê Castro. O decréscimo que a Covid-19 causou na esperança de vida brasileira em 2020 foi 72% maior que o observado nos Estados Unidos, líder de mortes pela doença no planeta. E, a julgar pelo padrão de mortandade, o impacto em 2021 vai ser ainda maior. No Amazonas e em Rondônia, por exemplo, as mortes por Covid-19 nestes quatro primeiros meses do ano já superaram os registros de todo o ano passado. “É possível que a gente, pelo segundo ano seguido, observe impacto significativo na expectativa de vida”, diz Castro.
No Amazonas, atingido com voracidade pela pandemia que mergulhou o estado no caos e matou mais de 5 mil pessoas em 2020, a retração na esperança de vida foi ainda mais grave. A expectativa de vida, que deveria chegar a 73 anos em 2020, ficou em 69,5. A mortalidade da Covid-19 fez o estado perder, em apenas um ano, 60% do avanço na expectativa de vida conquistado nas últimas duas décadas. Além da redução desse índice, a Covid-19 também intensificou as desigualdades regionais no Brasil, refletindo o peso desproporcional da epidemia nos estados. Antes da pandemia, a diferença entre a maior e a menor expectativa de vida em nível estadual era de 8,54 anos. Depois da pandemia, a diferença aumentou para 9,15 anos. Na estimativa dos pesquisadores, Santa Catarina apresenta o maior índice (78 anos), e Roraima, o menor (69 anos).
A esperança de vida ao nascer é um indicador que reflete o potencial de sobrevivência da população, dadas as características demográficas. Serve para responder a uma pergunta hipotética: se uma pessoa que nasceu em um dado ano fosse submetida, ao longo da vida, às condições de mortalidade observadas naquele mesmo ano, por quanto tempo ela sobreviveria? Para calcular a esperança de vida, os pesquisadores coletam informações sobre a mortalidade do país em um ano específico – número de mortes, idade e sexo dos mortos. Depois, a curva de mortes é padronizada e os pesquisadores chegam a um número. Castro explica que isso não significa que todas as pessoas vão observar essas taxas na vida real. Ou seja, os nascidos em 2020 não vão necessariamente morrer aos 75 anos. Mas essa é a melhor maneira que os especialistas encontraram para acompanhar a evolução da mortalidade no mundo e comparar indicadores de saúde em vários locais diferentes. A expectativa de vida também tem aplicações práticas importantes: é um dos parâmetros usados para calcular o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).
“É óbvio que a queda da expectativa de vida ao nascer vai trazer o IDH para baixo”, diz Castro. Especialistas já alertaram que, com essa queda, o Brasil terá dificuldade para cumprir os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável propostos pela ONU. Na análise de Castro, essa será uma tendência global, mas o impacto a longo prazo depende das medidas implementadas para controlar a pandemia. Nesse ponto, a situação do Brasil é preocupante. “Não temos nem vacinação rápida nem medidas sustentáveis que diminuam a transmissão do vírus”, avalia Castro. “A expectativa é que esse quadro melhore em 2022, mas não dá para garantir que a esperança de vida e o IDH voltem rapidamente ao nível pré-pandemia.”
É normal que crises sanitárias e humanitárias reduzam os índices vitais. A pandemia de gripe espanhola, no início do século XX, reduziu a expectativa nos Estados Unidos entre 7 e 12 anos. Assim que essas crises são superadas, geralmente há um repique que logo corrige a esperança de vida perdida. Mas, no caso da Covid-19 no Brasil, os pesquisadores argumentam que a situação não vai se estabilizar rapidamente. Primeiro porque o país atualmente atravessa o pior momento da pandemia. Com o sistema de saúde em colapso, a atenção básica não é capaz de diagnosticar e tratar outras doenças – e essa paralisia cobra um preço. Os pesquisadores estimam que só a redução dos tratamentos de tuberculose e HIV pode aumentar a mortalidade pelos próximos cinco anos. Em 2020, 20% das crianças deixaram de se vacinar contra hepatite B, poliomielite e outras enfermidades. Além disso, relatos de sequelas deixadas pela Covid-19 nos pacientes que sobrevivem continuam crescendo. Isso inclui fadiga, complicações neurológicas, pulmonares e cardiovasculares que podem trazer complicações a longo prazo.
A crise econômica, que eleva os níveis de pobreza e desigualdade, também pode afetar os indicadores de saúde no Brasil nos próximos anos. O fim do auxílio emergencial aumentou o número de pessoas abaixo da linha da pobreza. Atualmente, cerca de 27 milhões de brasileiros estão nessa situação – o que corresponde a 12,8% da população. Os pesquisadores lembram que a perda de renda pode reduzir o acesso aos serviços de saúde e aumentar os índices de mortalidade infantil. “O que vai acontecer no longo prazo depende de como o cenário da Covid-19 vai se desenrolar nos próximos meses. No ano passado, quando as mortes estavam em declínio, não fizemos nada para conter a segunda onda”, lembra Castro. “Se continuarmos sujeitos a isso, sem impedir a transmissão do vírus, podemos ter esses efeitos se arrastando por um período cada vez mais longo.”
Pela primeira vez na história, o Brasil pode registrar mais óbitos que nascimentos. Em abril deste ano, até o dia 13, a Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen) registrou 61.540 óbitos no país e 63.760 nascimentos – um saldo positivo de apenas 2.220 vidas. Os dados para esse período ainda não estão consolidados, mas indicam uma tendência perigosa. “Demograficamente, isso não é normal para o Brasil e está diretamente ligado ao excesso de mortalidade que estamos tendo por causa da pandemia”, explica Castro. A estimativa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) era que esse cenário só aconteceria em 2047, com a progressiva mudança na pirâmide etária brasileira. O choque demográfico causado pela Covid-19 pode antecipar esse processo de maneira brusca. “Não era para isso acontecer agora”, conclui Castro.
Em algumas cidades, o saldo negativo de vidas já é uma realidade. No ano passado, Rio de Janeiro e Porto Alegre registraram mais mortes que nascimentos, um cenário inédito nos registros da Arpen – o que os especialistas chamam de crescimento vegetativo negativo. A capital carioca, já com dados consolidados, fechou 2020 com saldo negativo de 4,6 mil habitantes e bateu recorde de mortes registradas no portal da Arpen – consequência direta da pandemia de Covid-19. O Rio de Janeiro chegou a ser a capital com a maior taxa de mortes pela doença a cada 100 mil habitantes no Brasil. Atualmente, todas as regiões da cidade estão sob risco muito alto de infecção e a tendência é que o morticínio prossiga em 2021. No mês de abril, até o dia 13, 19,4 mil óbitos foram registrados no município – e apenas 17,5 mil nascimentos.
“O caso do Rio de Janeiro levanta a questão do que vai acontecer com a estrutura da população depois da pandemia”, explica Castro. Essas mudanças podem trazer consequências econômicas. As projeções populacionais são publicadas todo ano pelo IBGE porque determinam o tamanho da verba destinada às cidades por meio de rubricas como o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). A base dessas projeções atualmente ainda é o Censo de 2010, com estimativas atualizadas ano a ano. “Existem técnicas demográficas que corrigem esses dados. Mas agora, mais do que nunca, precisamos do Censo atualizado para saber o que está acontecendo com a população”, argumenta Castro.
As análises demográficas têm três pilares: nascimentos, óbitos e migração. O terceiro componente só pode ser medido pelo Censo. Sem os dados de migração não é possível saber se nessas cidades chegaram mais pessoas do que saíram – e se a população de cada município está, de fato, diminuindo.
Em 2019, o IBGE pediu 3,4 bilhões de reais para realizar o Censo de 2020. Após pressão do governo federal, o órgão enxugou os gastos e estimou um custo de 2 bilhões. A pesquisa foi adiada por causa da pandemia de Covid-19. O Orçamento editado pelo governo neste ano prevê a liberação de apenas 71,7 milhões de reais para o Censo – menos de 4% do valor necessário. A verba inviabiliza o pagamento dos 204 mil recenseadores e supervisores, espalhados pelo Brasil, e dos demais custos da pesquisa. Procurado, o IBGE informou que aguarda uma definição do orçamento da União para se manifestar sobre o tema. “Só o Censo pode mostrar como está a população depois de um ano de pandemia”, explica Castro. Sem os dados, o país fica no escuro.
A demógrafa Marcia Castro acredita que o crescimento vegetativo negativo será revertido. “Esse nível de mortalidade não é sustentável a longo prazo”, explica. “Nem consigo imaginar um cenário desses.” A questão, para ela, é saber quando isso vai acontecer. O efeito de uma pandemia, além de ser medido pelo número de mortes, também pode ser medido pelo número de nascimentos. Em uma pesquisa anterior, Castro estudou a epidemia do vírus da zika e verificou que, na época, o número de nascimentos diminuiu.
“Não é incomum que a fecundidade caia em momentos de crise”, explica. “Pode haver uma retração dos nascimentos porque a situação é tão grave que as pessoas adiam a gravidez.” Nesse cenário, uma volta à normalidade pré-pandemia seria ainda mais lenta. Uma outra possibilidade é um baby boom, explosão no número de novos nascimentos assim que a pandemia acabar, como observado em períodos pós-guerra. “Tudo isso vai ter que ser estudado a longo prazo”, diz. Mais urgente é controlar a pandemia e reduzir danos. Até a última segunda-feira (12), o país registrou 355 mil óbitos por Covid-19 – quase metade deles nos quatro primeiros meses de 2021. “Abril já é um mês perdido. Agora a gente precisa tomar as medidas para salvar os próximos meses. É uma situação desumana”, conclui Castro.