O jornalista potiguar Octávio Santiago aguardava um trem de Porto para Braga, em Portugal, quando um encontro inusitado mudou seus rumos acadêmicos.
- Edison Veiga para a BBC News Brasil
Uma brasileira não estava conseguindo comprar o bilhete na máquina de atendimento automático, e ele ofereceu ajuda.
Em vez de agradecer, ela demonstrou espanto: “Nossa, você não é daqui e conseguiu”. Santiago disse então também ser brasileiro e, mais especificamente, de Natal.
“Eu contrariava o padrão da ideia que ela tinha na cabeça, de como deveria ser fisicamente um nordestino e como deveria ser a conduta coerente ao assentado em sua cabeça”, recorda o jornalista.
Desse episódio carregado de preconceito, Santiago surgiu a semente do livro Só Sei Que Foi Assim: A Trama do Preconceito Contra o Povo do Nordeste, que acaba de ser lançado pela editora Autêntica.
O trabalho é fruto de seu doutorado, defendido em dezembro de 2024 na Universidade do Minho.
O título é uma referência a uma frase icônica do Auto da Compadecida, peça de Ariano Suassuna, depois adaptada para o cinema.
Em seu livro, Santiago mapeia pontos que reforçam a discriminação contra os nordestinos — como o estigma de que eles seriam inferiores ao restante do país, a associação do sotaque a algo cômico e a própria generalização do Nordeste.
“O pessoal vai passar as férias e fala ‘vou para o Nordeste’. Parece que é uma grande praia que começa no sul da Bahia e termina lá no Maranhão”, exemplifica.
Depois de uma temporada morando em Portugal por conta do doutorado, Santiago está de volta a Natal, onde mora.
O potiguar é jornalista de carreira da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte desde 2017. Também já trabalhou como chefe de gabinete de deputados estaduais e federais.
Em entrevista à BBC News Brasil, Santiago analisou como diferentes reações a dois filmes recentes do cineasta Kleber Mendonça — Aquarius e Bacurau — revelam estigmas sobre a região.
Além disso, avaliou também como preconceitos contra o Nordeste se manifestaram na eleição presidencial de 2022 e como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) usa — ou deixa de usar — sua imagem como nordestino.
Santiago também apontou limitações do termo “sudestino”, que reage ao estigma do nordestino.
“Não faz sentido se for para combater um preconceito devolvendo com algum tipo de preconceito”, avalia o pesquisador.
BBC News Brasil – Por que a imagem preconceituosa do nordestino persiste?
Octávio Santiago – Porque é muito conveniente para o sul.
Quando falo “sul”, estou falando das regiões Sul, Sudeste e parte do Centro-Oeste, que detêm a narrativa de que essa porção do Brasil é o Brasil da prosperidade — e o resto é o Brasil que não dá certo.
A manutenção desse status quo garante que os privilégios vão ficar com quem detém a narrativa. Quem está à margem não pode ter acesso ou precisa lutar mais para ter acesso a oportunidades profissionais e acadêmicas.

Há uma dificuldade em enxergar um nordestino na condição de poder.
Parece a reprodução da ideia eurocêntrica, de que a Europa é o centro de tudo, e o que não é Europa está à margem.
É uma coisa muito parecida com o comportamento de São Paulo e Rio em diversas oportunidades: o que é São Paulo é Brasil. O que é Rio é Brasil. O que não é São Paulo e Rio é visto como regional.

BBC News Brasil – Há dificuldade em enxergar o nordestino em posição de poder? Ou uma recusa?
Santiago – Diria que são os dois, a recusa e a dificuldade. Quando a gente olha para o audiovisual, por exemplo, me parece que há uma dificuldade de autores colocarem personagens de origem nordestina para ocupar espaços de prestígio social legitimados pela competência, pela capacidade intelectual: professores, advogados e médicos…
Acho que as mulheres passaram por isso, e a população preta também passou por isso. Hoje, a gente vê protagonistas pretos bem-sucedidos por sua capacidade intelectual e não só na cozinha das casas.
Para o nordestino, ainda há essa dificuldade. Entendo que aí há mais dificuldade do que recusa, embora essas duas coisas aconteçam.
[O estigma] É conveniente também nas artes, porque é um produto mercadológico, vende, é de fácil associação.
Vem a redução estética, que é a carcaça de boi e o mandacaru sozinho em primeiro plano, ou vai ter o nordestino de folhetim, com o sotaque falacioso e usando expressões em demasia — muitas vezes das quais ninguém faz uso mais.
BBC News Brasil – Os produtos culturais de hoje continuam reforçando esses estereótipos, ou alguns estão conseguindo denunciar o estigma?
Santiago – Esse caráter denunciativo era mais presente no cinema dos anos 1960.
Hoje, o que predomina é uma representação recreativa do Nordeste e da sua população, uma abordagem voltada mais para o entretenimento do que para a crítica social.
Quando No Rancho Fundo [novela da TV Globo] foi anunciada, a reação foi imediata: muitos nordestinos expressaram cansaço diante dessa forma repetitiva de nos retratar, sempre através do filtro insistente do atraso. Não se trata mais de uma denúncia, mas da apropriação de uma narrativa conveniente.
Enquanto o Nordeste for enlatado como um só, seguirão acontecendo erros graves de representação.
Por exemplo, a divulgação [na imprensa] da participação de Aquarius e Bacurau no festival de Cannes [ambos os filmes de Kleber Mendonça Filho, respectivamente de 2016 e 2019].
No primeiro, publicou-se coisas como “Kleber Mendonça emplaca narrativa com [a atriz] Sonia Braga em Cannes”.
O outro [foi apresentado como], “Ode ao Nordeste vai a Cannes”, porque era o Nordeste seco, árido e violento como protagonista do filme.
São dois filmes que se passam no mesmo Nordeste, mas aquela história urbana vivida por Sonia Braga, uma história pautada por várias questões muito mais complexas do que a terra, não é legitimada como sendo do Nordeste.
Central do Brasil [filme de Walter Salles indicado ao Oscar em 1999], por exemplo, é um dos filmes que eu mais gosto e acho interessante, porque pelo menos ele sai de uma necessidade de colocar a seca como personagem central. Existe nele uma camada de subjetividade.
Josué [o menino protagonista] quer conhecer o pai. Ele é uma pessoa para além do quadro de retirância. Isso já é muito, porque é um ganho mostrar as camadas que existem nas pessoas, não apenas a seca. (…)
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