“Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando.
Antonio Quintella*/ Lilia Schwarcz*
Durante muito tempo a “branquitude” – o privilégio que a sociedade colonial e europeia adquiriu e conservou no Brasil – reinou como se fosse verdade e realidade “natural”: inquestionável e, por isso, invisível. Foi assim que nos acostumamos a achar “normal” não encontrar negros e negras nos bancos das nossas melhores escolas, nas redações dos jornais, nos ambientes corporativos, na direção de instituições e até mesmo nas áreas de lazer dos bairros considerados mais nobres. Também defendemos uma suposta “meritocracia” sem atentarmos para os cortes de classe e raça que esse conceito traz; como falar em “mérito”, de uma forma geral, quando o ponto de largada é profundamente desigual? Nos habituamos, ainda, a chamar de “universal”, e sem pejas, uma história que é só europeia, e a uma arte que é eminentemente masculina e ocidental. Se a “nossa” arte e a “nossa” história carecem de adjetivação, já as demais precisam ser qualificadas como se fossem derivações subordinadas: arte africana, arte indígena, história africana, história indígena.
Tal tipo de procedimento, levado a cabo durante tantos séculos, e de forma impune, acabou gerando uma grande cegueira cultural e processos de invisibilidade social muito perversos pois nem sequer nomeados. E, em geral, onde reina o silêncio, sobra contradição.
“Raça” só existe uma – a humana –, e aí estão os biólogos para comprovar. Mas desde sempre a humanidade criou outro conceito, “raça social”, e é dele que estamos aqui tratando. Qual seja, das maneiras como as sociedades “driblam a natureza”, e constroem marcadores sociais de diferença como raça, gênero, sexo, região e geração, e, assim, criam novas realidades ensejadas historicamente e ao longo do tempo.
O tema da raça entrou finalmente na agenda da nossa contemporaneidade.
No entanto, se os brasileiros podem até assumir a existência do racismo no país, em geral, negam que sejam, eles próprios, racistas, e costumam jogar o preconceito no “outro”: na história, no colega, no parente, no vizinho. No entanto, o racismo existente no país toma todos; sem exceção. Ele está presente no ambiente escolar, com altos níveis de repetência entre os alunos negros; na área da saúde e basta notar como as pessoas negras são as maiores vítimas da Covid-19; na área do trabalho com poucos participando de cargos de direção; na área da cultura e da moda, ainda espaços eminentemente brancos. E não adianta culpar apenas o passado, e maldizer o legado pesado da escravidão. Nos dias de hoje temos reproduzido dados que indicam a existência de um racismo estrutural e institucional, presente nas áreas mais insuspeitas e, também, naquelas muito suspeitas.
É por isso que a questão deixou de ser apenas moral; não adianta mais dizer que não somos racistas, é passada a hora de praticarmos atos antirracistas. Como foram os colonizadores brancos que implementaram o tráfico negreiro e criaram teorias que procuraram naturalizar a diferença – como o darwinismo racial, que determinava que as raças eram ontologicamente diferentes, ou o racismo científico, o qual colocava os brancos no alto de uma pirâmide social e os negros na sua base – é hora de atuarmos como aliados nessa luta que é de todos os brasileiros. Na luta antirracista.
Não teremos uma democracia por aqui, como bem demonstra Sílvio Almeida, enquanto permitirmos que o racismo vigore e de forma tão perversa. Mas, também, jamais teremos no Brasil uma economia tão pujante e produtiva, quanto poderíamos ter e apresentar (e precisamos dela para vencer a extrema pobreza e desigualdade que nos assolam), se o racismo permanecer entre nós. A manutenção do status quo, se não o seu agravamento, não é sustentável. Ademais, essa preocupante trajetória pode colocar em risco a nossa precária estabilidade institucional.
Muito já foi dito sobre fazer crescer o bolo ou, ainda, que a subida da maré levanta todos os barcos, e que esses processos enriquecem as nações. Entretanto, as evidências das últimas décadas demonstram que ao longo desse caminho não somos todos igualmente beneficiados. Aliás, muitos sequer são beneficiados de todo. Na ausência de políticas públicas compensatórias e bem coordenadas, os benefícios vão para uns e não para outros, e, em geral, os maiores benefícios são capturados por muito poucos.
Infelizmente, a pandemia provocada pela disseminação do Covid-19 fez o bolo decrescer e a maré baixar repentina e significativamente. Nesse ambiente, que possivelmente nos fará conviver com altas taxas de desemprego e baixos níveis de ocupação e atividade por muito tempo, as desigualdades tendem a se tornar ainda mais expressivas e as vantagens percebidas por aqueles que detém o capital (seja ele intelectual e/ou financeiro) mais pronunciadas. Essas disparidades não podem ser moralmente toleráveis e, além do mais, comprometerão o desempenho da própria economia brasileira enquanto persistirem.
Diante dos inúmeros desafios introduzidos pela pandemia, em especial os de ordem econômico-social, é necessário resgatar a discussão em torno das opções disponíveis para combater a pobreza no Brasil. Ricardo Paes de Barros (et. al.) propunha, já em 2000 (Desigualdade e Pobreza no Brasil: Retrato de uma Estabilidade Inaceitável, Revista Brasileira de Ciências Sociais), que o foco no crescimento econômico como estratégia central no combate à pobreza deveria ser relativizado. O estudo àquela época apontava para (a despeito dos ciclos, transformações e dos mais variados experimentos econômicos) uma relativa estabilidade na dimensão da pobreza no país, e propunha que políticas que focassem na diminuição da desigualdade precisariam ser combinadas com aquelas que estimulassem o crescimento econômico. Não seriam essas políticas mutuamente excludentes, mas complementares. O diagnóstico feito a partir daquele minucioso estudo demonstrava a existência de uma estreita relação entre a má distribuição dos recursos e a pobreza, situação que permanece até hoje. O estudo sentenciava então que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres”.
Devemos adicionar uma nova dimensão a essa discussão. O tema do racismo tem claro impacto no ambiente do trabalho, como vem mostrando Cida Bento, entre outros. As práticas e atitudes racistas alijam uma parcela considerável da nossa população, tolhendo-a de oportunidades indispensáveis e fundamentais na área da educação e ocupacional, por exemplo, impedindo-a de exercer as mais diversas atividades profissionais na plenitude do seu potencial criativo e produtivo. A eliminação do racismo é ainda mais relevante em uma sociedade tão desigual quanto a brasileira, em que, segundo dados e termos do IBGE, negros e pardos correspondem a quase 56% da população.
O Brasil já não mais se beneficia de um bônus demográfico, ao contrário. Na medida em que nossa população envelhece, nosso crescimento econômico depende, sobretudo, de um aumento significativo da produtividade. Vários estudos recentes têm sido feitos a respeito da relativa perda de dinamismo da economia brasileira nos últimos anos, apontando que isso possa estar associado à baixa produtividade do trabalho. O Professor José Pastore em artigo no Estadão (de 27 de fevereiro de 2020) sugeria que a “produtividade não resulta desta ou daquela providência, mas sim de ações orquestradas em vários campos durante muitas décadas”, notadamente no campo da educação. Sem dúvida, o aumento da produtividade também passa pela desburocratização, pela abertura da economia, pelos esforços de privatização, pela racionalização da carga tributária e maior eficiência do Estado.
Mas esses esforços terão sido insuficientes se tivermos deixado para trás metade dos brasileiros.
Se o Brasil pretende crescer de forma sustentável, precisa resgatar uma histórica dívida social. Devemos urgentemente oferecer as condições necessárias para mitigar a desigualdade, em especial a de oportunidades. É necessária uma profunda reflexão sobre a nossa sociedade, reconhecendo a riqueza da sua diversidade e estabelecendo uma agenda de inclusão que desperte, motive, engaje e permita que a população negra ocupe, com destaque e sem constrangimentos, espaço nos meios acadêmicos, culturais e empresariais.
A defesa da pauta antirracista implica, portanto, uma agenda de ações. Mas sua defesa não leva em conta apenas a “culpa” ou o mero ressarcimento; o qual, aliás, nunca foi realizado. Ela pretende mostrar que seremos muito melhores se formos mais diversos. Mais é sempre mais, quando se pretende colocar em relação potencialidades, experiências, percursos e histórias tão distintas como comuns.
Portanto, o antirracismo, além de precisar fazer parte de uma agenda republicana e democrática brasileira, precisa ser incorporado ao pensamento e à formulação da política econômica. O racismo não é apenas moralmente degradante e inaceitável, ele também é um impedimento ao pleno e sustentável desenvolvimento econômico. Não, o problema não é só dos negros, é da sociedade como um todo. E da conscientização e efetiva mobilização das nossas lideranças dependem as soluções.
*ANTONIO QUINTELLA É EMPRESÁRIO, ECONOMISTA PELA PUC-RJ E POSSUI MBA PELA LONDON BUSINESS SCHOOL/UNIVERSIDADE DE LONDRES
*LILIA M. SCHWARCZ É HISTORIADORA, ANTROPÓLOGA, PROFESSORA DA USP E EM PRINCETON. TAMBÉM É AUTORA DE VÁRIOS LIVROS.
Este artigo foi publicado originalmente pelo Estadão. Imagem de abertura: crédito não dado porque não encontrado.
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