Murilo Pajolla, Brasil de Fato
O relatório Conflitos no Campo Brasil 2021, divulgado nesta segunda-feira (18) pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), consolida a percepção de que o garimpo ilegal se tornou um dos principais indutores da violência no campo. A atividade foi responsável por 92% das mortes por conflitos registradas pela CPT.
No decorrer de 2020, a entidade identificou nove mortes por conflitos no campo em todo o território nacional. Em 2021, o número saltou para 109, um aumento de 1.110%. Desse total, 101 mortes foram de indígenas Yanomami provocadas por ações de garimpeiros.
Conforme aponta a CPT, a mineração ilegal impede o acesso de comunidades à pesca, caça e coleta ou a serviços de saúde, provocando agravamento de doenças e mortes por falta de assistência. Tudo com a “omissão e conivência do Estado”, diz o relatório.
No território Yanomami, destacam-se casos de mortes brutais de crianças: duas sugadas pelas dragas usadas por garimpeiros e outras duas afogadas na fuga de ataques dos criminosos ambientais.
Além disso, três indígenas isolados morreram em um massacre promovido por garimpeiros em agosto de 2021. Testemunha do caso, um indígena descreveu que as mortes foram resultado da investida dos isolados contra um garimpo que se aproximava do seu local de moradia.
Conflitos aumentam 80.000% em uma década
Para a advogada e coordenadora do CPT, Adriana Silvério, o cenário é consequência da atuação do governo de Jair Bolsonaro em favor dos garimpeiros. Modificações na legislação e na estrutura da administração pública diminuem a capacidade de órgãos federais ligados à proteção do meio ambiente e dos povos indígenas.
“Bolsonaro visitou a Terra Índigena (TI) Yanomami em 2021. Ele esteve lá e fez a defesa do garimpo dentro do território, contra a representação das próprias lideranças da associação indígena que estava presente durante o encontro”, lembra Silvério.
Em uma década, os conflitos relacionados ao garimpo cresceram 80.000%. Em 2011, foi registrado um episódio violento em decorrência da atividade. No ano passado, o número saltou para 81, com alta vertiginosa a partir de 2019 (veja na tabela abaixo).
“A atividade garimpeira tem uma relação direta com o prejuízo que essas comunidades passam a sofrer em decorrência da contaminação da água. E aí acaba intensificando também ainda mais os conflitos, porque muitas comunidades ficam sem condições de acesso à água potável”, afirma a advogada.
“Os números têm crescido ainda mais nesse período de ruptura política no Brasil a partir de 2015 e 2016. E têm se intensificado muito mais durante o governo Bolsonaro”, acrescenta.
Yanomami sob ataque
A TI Yanomami (RR) é palco de um tragédia social provocada pela mineração ilegal. Um relatório da Hutukara Associação Yanomami descreveu o aumento drástico da malária, da subnutrição e de abusos sexuais de mulheres e crianças em troca de comida.
Os efeitos são sentidos por 16 mil moradores de 273 comunidades, o equivalente a 56% da população total. Com o tamanho de Portugal, o território Yanomami tem 29 mil habitantes em 350 aldeias.
“A gente vê crianças com má formação genética, dificuldade das indígenas durante o período gestacional, desnutrição das crianças. É uma situação muito triste. E o garimpo continua avançando sobre essas áreas sem nenhum tipo de misericórdia em relação à situação desses povos”, lamenta Silvério.
O clima de ameaças contra os Yanomami se intensificou desde abril do ano passado, quando indígenas interceptaram uma carga de combustível para aeronaves do garimpo que descia o Rio Uriracoera, principal via de acesso aos garimpos ilegais da região.
Reportagens publicadas pelo Brasil de Fato mostram que, desde o episódio, os invasores perseguem, agridem, ameaçam e atacam com balas e bombas de gás lacrimogêneo os povos originários do Palimiu.
Povos originários da região tiveram que mudar a rotina e se revezar em esquemas de segurança por causa dos ataques. Lideranças explicam que o clima de pânico está generalizado e que muitos indígenas não conseguem mais dormir.
Após um ataque de garimpeiros, seis crianças, com idades entre dez e onze anos, e dois adolescentes que pescavam em uma canoa no Rio Uriracoera próximo à Comunidade Tipolei, na região do Palimiu, foram derrubados da embarcação pelos invasores.
Armados, os agressores aceleraram contra os Yanomami e bateram com o barco contra a canoa, fazendo com que os indígenas caíssem na água e a embarcação afundasse.
Paredão de balsas no rio Madeira
O Brasil de Fato também já mostrou como o garimpo ilegal às margens do rio Madeira (AM) transforma cada vez mais comunidades ribeirinhas em reféns da atividade econômica.
No ano passado, imagens que circularam o mundo de um “paredão” de balsas de garimpo que quase travou a navegação pelo curso d’água.
Trabalhadores que se dividem entre o campo e o garimpo sabem que a atividade ilegal rende mais dinheiro. Mas nem sempre isso compensa.
“Se hoje eu plantar, tipo, 500 pés de banana, vou tirar R$ 1 mil e pouco em cinco ou seis meses. Na balsa, se você trabalhar um mês, dependendo do ouro, você faz uns R$ 8 mil. Na roça o colega se ferra, é um trabalho sofrido, mas o dinheiro é abençoado. Eu comparo assim porque o dinheiro que eu pego em ouro no final de semana eu compro qualquer coisinha e já era, já acabou”.
O depoimento é de um ribeirinho que vive em uma comunidade às margens do Rio Madeira, perto do Município de Manicoré (AM), e que pediu anonimato. Aos 28 anos, ele se alterna entre o cultivo de bananas e a lavra garimpeira para sustentar esposa e seis filhos.
Há aproximadamente 150 comunidades ribeirinhas espalhadas pelas margens do Rio Madeira, apenas no trecho de 700 quilômetros entre Porto Velho (RO) e Manicoré (AM). Pelo menos 40% delas estão ou já estiveram envolvidas com a extração mineral.
A estimativa é de Jordeanes Araújo, antropólogo e professor da Universidade Federal do Amazonas (Ufam). “É importante perceber como o garimpo ilegal imobiliza a força de trabalho local, por causa do intenso comércio de ouro e outros produtos. Isso mexe com a própria estrutura agrária dessas comunidades”, explicou o docente.
Garimpo espalha pobreza
Em fevereiro deste ano, a operação conjunta “Caribe Amazônico”, deflagrada pela Polícia Federal (PF) no entorno da Terra Indígena Munduruku, no oeste do Pará, provocou protestos de garimpeiros na cidade de Itaituba, um dos polos da mineração ilegal no país e conhecida como “cidade pepita”. A operação recebeu este nome porque a lama dos garimpos escureceu as águas do balneário turístico de Alter do Chão (PA).
Mensagens nas redes sociais estimularam protestos, que tomaram a região: “Empresários de Itaituba. Tem que reunir os garimpeiros, os madeireiros e os comerciantes. Todo mundo aqui depende do garimpo”.
Em outro áudio, um homem diz: “Essa é uma causa de todos. Vamos fechar o comércio e dar pressão nesse pessoal [da fiscalização ambiental]. Porque, se fechar os garimpos, acabou para todo mundo”.
A maranhense Maria do Rosário confirma que a dependência da atividade coloca o município em uma situação de vulnerabilidade econômica. Morando em Itaituba desde a década de 1980, ela chegou a trabalhar na mineração ilegal, mas abandonou a atividade. “Graças a Deus”, diz.
Segundo ela, há um corte de classe bem definido entre os apoiadores da atividade. No topo da pirâmide, estão proprietários das balsas e escavadeiras que financiam a cara infraestrutura necessária.
“Os subordinados aos donos de máquinas pensam que estão ganhando. Na verdade, eles estão enriquecendo um pequeno número de pessoas, enquanto a maioria fica mais pobre ainda”, afirma.
“Quem realmente ganha no trabalho de garimpo são os donos das máquinas. Eles pagam 30% dos ganhos para os trabalhadores. E os 70% muitas vezes nem ficam na economia da cidade. O ouro acaba sendo desviado para fora do país”, afirma.