“Eu sentia um amor muito grande. Não tem nem explicação para o sentimento.” É assim que o cuidador de idosos Rodrigo Rafael de Camargo, de 39 anos, lembra de Carlos, que tinha demência e faleceu em abril, aos 87.
Mônica Vasconcelos – Da BBC News Brasil em Londres
“Quando eu chegava, ele já dava um grito. ‘Rodrigo, vem aqui um pouco. Você não viu o que está acontecendo com o controle da TV aqui?’”, recorda-se.
“Aí eu mexia no controle e tava tudo funcionando. Eu abria o controle, tirava a pilha, colocava a pilha no lugar, pegava um paninho, limpava por dentro. Aí eu falava, ‘tá funcionando’. Mas não tinha nem parado, sabe? Aquilo era só para eu estar perto dele”, prossegue.
A demanda por profissionais como Rodrigo é cada vez maior em um Brasil que fica cada vez mais velho.
Em 2070, mais de um terço (37,8%) dos brasileiros serão idosos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
De 2000 para 2023, a proporção de pessoas com 60 anos ou mais na população brasileira quase duplicou: subiu de 8,7% para 15,6%.
Ao mesmo tempo, a taxa de fecundidade do país recuou de 2,32 em 2000 para 1,57 filho por mulher em 2023. E a população do país vai parar de crescer em 2041, segundo projeção do IBGE.
Boa parte do cuidado com a população brasileira que envelhece recai e recairá cada vez mais na figura do cuidador de idosos — um trabalhador invisível em uma atividade não regulamentada que, segundo especialistas na área, pode ganhar mais de três salários mínimos (R$4.236).
Há expectativa de que uma nova política para a profissão seja aprovada em Brasília.
Após anos de campanhas pela sociedade civil, a Câmara dos Deputados aprovou, em 12 de novembro, um projeto de lei que institui a Política Nacional de Cuidado. Em dezembro, o projeto foi aprovado também pelo Senado e agora depende de sanção presidencial.
A proposta coloca o cuidado como um direito do cidadão e abre caminho, segundo especialistas, para a regulamentação da profissão de cuidador de idosos e, muitos esperam, a oferta de cuidado como um serviço no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
A BBC News Brasil entrevistou especialistas na área, além de ouvir a experiência de Rodrigo, para entender como é o cotidiano dos cuidadores de idosos e o que pode mudar a regulamentação da atividade e o investimento na formação destes trabalhadores.
Afinal, seria esta uma profissão do futuro no Brasil?
‘Fui trocar uma lâmpada e virei cuidador’
Rodrigo trabalhava como segurança de um condomínio em Indaiatuba, no interior de São Paulo, quando um pedido de um casal de moradores, Carlos e Maria das Dores, mudou sua vida.
“Fui trocar uma lâmpada, e eles me convidaram para ser motorista deles. Depois virei cuidador. Com o Seu Carlos, eu chegava de manhã, tinha de preparar os medicamentos — ele tomava muitos comprimidos.”
“Ele tinha demência, e teve também derrame. Às vezes, dava um branco na mente dele e ele acabava esquecendo algumas coisas. Aí eu ficava conversando com ele, até que ele começava a lembrar. Nos tornamos muito amigos.”
O cuidador se lembra do dia em que começou a ajudar Carlos a fazer a higiene pessoal. Um momento delicado, mas a partir dali “ficou tudo mais fácil”.
“Foi uma vez que fomos ao hospital colher um exame. Ele era bem fechado. Ia colocar uma camisa, você tinha de sair de perto. E ele não estava conseguindo fazer a coleta. Eu falei, ‘seu Carlos, o senhor quer uma ajuda?’ ‘Mas não tem problema?’ ‘Não.’ Ajudei a fazer a coleta do xixi. Aí ele começou a pegar intimidade.”
“Nos últimos tempos, ele ficou bem debilitado, então tive de ajudar mais com a higiene. Mas eu me sentia muito confortável com ele. E acho também porque eu tive uma convivência com meu tio, ele é cadeirante. Ajudei a cuidar dos ferimentos dele. Então veio me ajudar nessa parte.”
Rodrigo é um perfil atípico entre cuidadores de idosos.
O cuidador típico no Brasil tem perfil mais parecido com o da empregada doméstica, diz à BBC News Brasil Jorge Félix, autor do livro A economia da longevidade: O envelhecimento populacional muito além da previdência.
“O cuidador é uma mulher com cerca de 40 anos de idade, negra, pobre, com poucos anos de estudo, que vê hoje, com a regulamentação da profissão de empregada doméstica, menos demanda por seus serviços como doméstica”, diz Félix, que é pesquisador da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e professor de gerontologia na Universidade de São Paulo (USP).
Ele afirma que a classe média não quer mais contratar empregadas em horário integral para não ter que arcar com o custo de assinar a carteira. A demanda por cuidadoras, por outro lado, aumenta cada vez mais.
Isso se reflete, inclusive, nos salários, diz o pesquisador.
“A cuidadora hoje consegue ganhar até três salários mínimos e, se ela tiver formação, pode ganhar até mais”, diz.
Rodrigo, que depois passou a cuidar da viúva de Carlos, Maria das Dores, 85 anos, diz não ter intenção de fazer o curso de cuidador.
“Conheço uma pessoa que trabalha (como cuidadora) que falou para mim que eu faço muito mais do que uma pessoa que fez o curso. Sou uma pessoa que o que tiver que fazer, eu faço. Levo no pilates, agacho, coloco o sapato no pé dela. Às vezes, quem está em volta fica olhando, mas eu faço. Porque vejo a dificuldade que tem.”
“E gosto de fazer a mais do que aquilo que tem de fazer. Na maioria das vezes, quando você estuda, você tem um limite. Mas eu não vejo uma barreira. Participo de tudo, me sinto como um filho. Prefiro assim do que ter um curso e ter de me limitar.”
No entanto, especialistas chamam a atenção para os riscos que a falta de formação e preparos adequados dos cuidadores pode trazer para os próprios trabalhadores.
Félix compara a postura de Rodrigo à de muitas trabalhadoras domésticas brasileiras.
“Há um voluntarismo muito grande. ‘Pode deixar, eu limpo a vidraça, subo na escada, comigo não tem tempo feio’”, diz o pesquisador.
No trabalho de cuidado, no entanto, essa atitude pode ser muito mais prejudicial ao profissional, explica Félix.
“Vão levantar a pessoa, vão pegar o peso do corpo da pessoa idosa, mas não colocam uma cinta para proteger a coluna, não conseguem ver seus próprios limites”, diz o pesquisador.
“Existe também o aspecto psicológico. Quando ela [a cuidadora] não tem formação, ela tem mais insegurança. Não sabe como lidar com uma situação de surto da pessoa que ela está cuidando. Então, o medo, a insegurança, o estresse, a ansiedade são muito grandes.”
O custo pessoal para o cuidador e das profissões que envolvem cuidado de uma forma geral também está ligado ao envolvimento emocional com a pessoa cuidada.
‘Você vai demorar para voltar?’
Rodrigo conta como a relação com Carlos, além de se tornar cada vez mais íntima, também ficava cada vez mais intensa e ganhava novos contornos conforme o idoso requisitava cada vez mais sua presença.
“Às vezes, eu tinha de ir à farmácia, e ele falava, ‘você não vai demorar não, né?’ Às vezes, eu levava ele e ele ficava dentro do carro, pra ficar me olhando. Ele queria ficar próximo. E quando eu ia embora, ele perguntava: ‘você vai demorar pra voltar?’”
“Mais especial foi nos últimos dias da vida dele. Deixa eu dar uma respirada. (Pausa) Ele falava que me tinha como um filho. É que ele teve só filhas mulheres. Quando ele estava internado, as meninas (vendo que eu estava sofrendo), arrumaram enfermeiras para ficar com ele. Eu não me sinto muito bem em hospital, e vendo a forma como ele estava, eu sofria muito. Então eu só ia nas visitas. Eu chegava lá, ele sentia muita falta. Ele falava, ‘por que você me abandonou?’”
“O dia que ficou mais marcado foi o dia que eu levei ele para o hospital. Ele tava em casa, tava passando mal. Eu perguntei, ‘seu Carlos, tá tudo bem? O que o senhor tá sentindo?’ Ele falou, ‘ah, minha vista está diferente’. Eu falei, ‘a gente vai para o hospital’. Ele falou, ‘não, não precisa. O filme está acabando’. ‘Mas que filme?’ ‘O filme tá acabando. O filme acabando, acaba tudo.’ Foi onde começou”, relata Rodrigo, em meio às lágrimas.
“Ele foi pro hospital, ficou internado. Pouco depois, veio a falecer.”
Ao lembrar dos seus últimos momentos juntos, Rodrigo explica emocionado que teve de procurar um médico para lidar com ansiedade e depressão.
É preciso pensar no envelhecimento precoce do profissional cuidador, sobretudo quando a pessoa de quem ela está cuidando morre, diz o gerontólogo Jorge Félix.
Ele vai além: “Isso deveria ser pensado inclusive em termos da previdência social [do cuidador]”.
Félix compara o desgaste do cuidador ao de uma enfermeira, por exemplo.
“A enfermeira tem um amplo preparo, inclusive psicológico, para lidar com essas situações. Ela tem um treinamento para tratar de forma humana, mas não ter um envolvimento”, diz o pesquisador.
Sem esse escudo psicológico, o luto do cuidador acelera seu envelhecimento, diz Félix.
“É como se ele tivesse perdido a razão de viver. São situações com as quais eles deveriam aprender a lidar no curso de formação.”
Formação profissional
Nesse sentido, uma formação profissional adequada seria fundamental para a proteção e benefício tanto do cuidador quanto da pessoa cuidada, segundo os especialistas.
Por iniciativa de ONGs como a Abraz (Associação Brasileira de Alzheimer e Outras Demências), um curso técnico profissionalizante de Cuidadores de Pessoas Idosas foi inserido no catálogo nacional do Ministério da Educação.
No entanto, sem uma regulamentação da profissão e sem uma padronização no tipo de formação necessária para o exercício da atividade, o relato é de que a demanda por cursos desse tipo acaba sendo baixa.
O professor e pesquisador Daniel Groisman, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), diz que a entidade oferecia um curso de qualificação profissional (com menos horas do que o curso técnico) para cuidadores, mas hoje opta por oferecer cursos de formação para formadores de cuidadores.
Ainda assim, uma pesquisa longitudinal da Fiocruz com ex-alunas do curso de qualificação trouxe resultados bastante encorajadores, comenta Groisman, coordenador do projeto Cuidando de Quem Cuida.
“Um primeiro resultado foi que o acesso à formação teve um impacto positivo para a empregabilidade”, diz Groisman.
“Comparando o que as pessoas estavam fazendo na época em que procuraram o curso e o que estavam fazendo quando foram entrevistadas, houve um aumento significativo no número de pessoas atuando como cuidadoras e uma diminuição no número de pessoas que estavam desempregadas.”
As ex-alunas também falaram da melhoria na qualidade do seu trabalho como cuidadoras, prossegue Groisman.
“É um resultado importante, elas saberem trabalhar com melhor qualidade tanto em relação às práticas do cuidado como também com uma consciência para se protegerem de situações de sobrecarga de trabalho e violações de direitos.”
O estudo também concluiu que as cuidadoras com formação são mais aptas a prevenir acidentes domésticos com idosos, já que entendem como criar um ambiente mais seguro para a pessoa idosa em casa.
Finalmente, lembra Groisman, em uma profissão que pode ser tão solitária, as cuidadoras e cuidadores que fazem o curso podem encontrar solidariedade no convívio com outros profissionais.
Com ou sem qualificação profissional, Rodrigo parece estar certo de que cuidar é sua verdadeira vocação e conta como a profissão o transformou.
“Eu trabalhava no condomínio [como vigia]. Você vê muito ódio e você acaba mudando a sua personalidade. Um exemplo pra você: Eu ia atender uma ocorrência. Chegava em uma casa, o vizinho tinha ligado na portaria para reclamar do barulho. Você ia conversar, explicar a lei, a pessoa muitas vezes te humilhava. ‘Você não é nada, eu sou tal coisa.’
“Então você vai mudando a sua personalidade. Tem de ser mais grosso, mais rígido. Mas quando eu vim trabalhar com eles, vi que é mais amor. Voltei a ter um sentimento novamente. Percebi que aquele trabalho não era bom pra mim, porque eu não sou uma pessoa daquele jeito. Eu sou uma pessoa atenciosa, uma pessoa carinhosa. Foi muito bom para eu entender que estava na área errada.”
Semanas depois da entrevista à BBC News Brasil, Rodrigo contou que foi desligado do trabalho por corte de custos e passou a trabalhar como cuidador de outro idoso: “Mas não quero me apegar muito, porque a gente sofre”.
Profissão do futuro?
Em um Brasil que envelhece, uma atividade tão antiga pode também ser uma profissão do futuro.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), entre 2019 e 2023 houve um aumento de 15% no número de cuidadores remunerados no Brasil. A pesquisa estima que eles somavam, em 2023, cerca de 840 mil.
Para compreender o tamanho do mercado em potencial, é importante olhar para o cuidado não remunerado feito no país hoje.
O número de familiares que se dedicavam a cuidados de pessoas de 60 anos ou mais saltou de 3,7 milhões em 2016 para 5,1 milhões em 2019, segundo o IBGE.
São pessoas — na maioria, mulheres — que trabalham muitas vezes na invisibilidade, sem remuneração, fazendo grandes sacrifícios pessoais (por exemplo, abandonando suas profissões, colocando em risco sua saúde e sua própria sobrevivência financeira na velhice), segundo especialistas.
Olhando para essa realidade, Groisman e Félix respondem que cuidar já é uma profissão crítica para o Brasil do presente.
Se vai ser uma profissão do futuro, isso vai depender, em grande parte, do governo brasileiro, diz Jorge Félix.
Ele cita o projeto de lei que estabelece a Política Nacional de Cuidado, enviado pelo governo federal ao Congresso.
“Isso vai formar a base para depois você definir e regulamentar a profissão de cuidadora”, diz Félix. “É a primeira vez que o Executivo tenta tomar uma iniciativa sobre a questão do cuidado, principalmente, estabelecendo o direito ao cuidado.”
Félix considera que se trata de um avanço muito grande, mas diz que, por enquanto, o que existe são promessas.
“Durante a campanha presidencial, Lula faz essa promessa de criar um serviço de cuidadora de idosos domiciliar. No meu entendimento, seria um serviço semelhante ao dos agentes comunitários de saúde que já existe no SUS”, diz o pesquisador.
“Então, você teria uma pessoa do serviço público que vai à sua casa, te dá banho, ajuda sua família a fazer a gestão dos medicamentos, verifica se a pessoa está bem cuidada com visitas periódicas. São promessas, não é? Promessas.”
Félix acompanha atento os desdobramentos no Congresso. Ele diz que “a profissão de cuidador pode ser uma profissão do futuro caso o Estado ofereça, abrace esse serviço, como ocorre em alguns países ricos”.
Mas, se a promessa não for cumprida, o cenário pintado é preocupante, diz o especialista.
Se o custo do cuidado recair somente sobre a família, o envelhecimento populacional trará um aumento na demanda, mas essas famílias não terão como pagar, diz.
“Somente 20% da população brasileira paga por esse serviço”, diz.
“Se continuar assim, você continua a ter muitas pessoas sem cuidado. Que ficam sozinhas em casa, e morrem em casa sem ninguém saber.”
Procurado pela BBC News Brasil em outubro, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) não tinha oferecido, naquele momento, uma previsão para a conclusão da tramitação da Política Nacional de Cuidado, mas informou que além de avançar na garantia do direito ao cuidado, a política deve “diminuir a sobrecarga de trabalho de cuidados que hoje recai sobre as famílias e dentro delas sobre as mulheres”.
O ministério disse ainda reconhecer a importância da regulamentação da profissão de cuidador e cuidadora. A pasta disse trabalhar para “atender às demandas das(os) profissionais que atuam neste setor, tais como oferta de formação profissional, elevação de escolaridade da categoria, promoção de trabalho decente (acesso a direitos trabalhistas, fiscalização do trabalho, adequação às normas de segurança e saúde), entre outras”.
Em 2019, o Congresso Nacional manteve veto do então presidente Jair Bolsonaro a um projeto de lei que regulamentava a profissão de cuidador. Na ocasião, o governo justificou o veto dizendo que o texto criava regulamentações “com a imposição de requisitos e condicionantes, ofendendo o direito fundamental de livre exercício profissional”.
Na resposta à BBC Brasil, ao mencionar esse veto, o ministério disse que ele “indica que os termos da regulamentação ainda estão sendo debatidos e disputados no âmbito do legislativo nacional”.
Também em resposta à BBC News Brasil, o Ministério da Saúde informou que, além do atendimento oferecido pelos agentes comunitários de saúde (mencionados por Félix), a pasta oferece “atendimento multiprofissional e domiciliar por meio das equipes de Estratégia de Saúde da Família, voltado para demandas de saúde de rotina, especialmente para idosos”. O Ministério da Saúde não mencionou quantas pessoas recebem atendimento por meio desse serviço.