Em 19 de maio de 1952, o escritor iniciou uma jornada de 10 dias e 240 quilômetros com boiadeiros pelo interior de Minas. Quatro anos depois, nasceria uma das principais obras da literatura brasileira.
Rede Brasil de Fato/Vitor Nuzzi
São Paulo – Em 19 de maio de 1952, um grupo de 18 boiadeiros saiu tocando o gado pelo interior de Minas Gerais. Travessia que levou 10 dias e consumiu 240 quilômetros. Levavam junto um senhor de quase 44 anos, quieto, mas curioso, anotando e perguntando tudo. Tanto que um dos líderes do grupo, Manuel Nardi, às vezes até se aborrecia. Mas valeria a pena. Desse inquieto vagar, anotar e perguntar, surgiria, quatro anos depois, o livro Grande Sertão: Veredas. E também Corpo de Baile.
O autor, João Guimarães Rosa, nascido em 1908 na pequenina Cordisburgo (MG), tinha se formado em Medicina, escrevia contos e poemas (ganhou um concurso em 1936 com a obra Magma, só publicada muito tempo depois) e virou cônsul após prestar concurso no Itamaraty. Estava na Alemanha quando o Brasil rompeu com o país europeu durante a 2ª Guerra Mundial. Chegou a ser preso. Já no pós-guerra, em 1946, publicou o livro de contos Sagarana.
Personagens reais
Nos tempos de cônsul-adjunto na Alemanha, já separado e com duas filhas (Vilma e Agnes), Guimarães Rosa conheceu Aracy, funcionária da diplomacia brasileira, com quem se casou. Mais tarde, Aracy ajudou judeus ameaçados pelo nazismo, viabilizando a entrada de muitos deles no Brasil.
Era com essa bagagem de letras e de vida que o “vaqueiro Rosa” acompanhou os boiadeiros no transporte do gado, pertencente a seu primo Chico Moreira. Em 2011, a editora Nova Fronteira lançou o livro A Boiada, com manuscritos de anotações do escritor feitas durante o percurso. E muitas páginas datilografadas. Detalhes da viagem que fariam brotar histórias e personagens. O próprio Manuel se tornaria um deles (Manuelzão).
Guimarães Rosa detalhou o trajeto:
Etapas
19, segunda – Sirga /TOLDA
20, terça-feira – Tolda / ANDREQUICÉ
21, quarta-feira – Andrequicé / SANTA CATARINA
22, quinta-feira – Santa Catarina / CATATAU
23, sexta-feira – Catatau / RIACHO DAS VACAS
24, sábado – Riacho das Vacas / MELEIRO
25, domingo – Meleiro/ ETELVINA (BARREIRO DO MATO)
26, segunda –Etelvina / JUVENAL
27, terça –Juvenal / TABOQUINHA
28, quarta – Taboquinha / ARAÇAÍ
Derrubando boi zebu
Na viagem toda, o cardápio foi sempre o mesmo: arroz, feijão, farinha e carne seca. Numa fazenda, ele ganhou um vidro de pimenta. “Foi um dom de Deus para temperar o eterno ‘menu’”, disse Rosa à revista O Cruzeiro, que publicou longa reportagem (repleta de fotos, como a que ilustra este texto, de Eugenio H. Silva), assinada por Alvares da Silva, com o título Um escritor entre seus personagens. Uma vez teve galinha na mesa, outra vez, porco com abóbora. Um único acidente no trajeto foi quando o vaqueiro Santana levou coice de um boi.
Zito, vaqueiro, cozinheiro e poeta, narrou assim aventura:
O Doutor saiu do Rio Com prazer e alegria Para acopar uma boiada Para ver o que acontecia Na boiada do Manuelzão Vinha Dr. João Rosa Derobando boi zebu Tava todo cheio de prosa
A cadernetinha de Rosa guardou aromas, paisagens, bichos e gente, nuvens e ninhos de sol, trabalho, crença, poeira, estrada, demo, redemoinho, homem humano, travessia. “No meio de toda as alegrias e de todas as grandiosas comoções”, criou um universo a partir do do real. Sem “escrever difícil”, como alguns acham. “Eu sei o nome das coisas”, escreveu a um amigo.
Guimarães Rosa se encantou em 1967, logo depois de entrar para a Academia Brasileira de Letras. Do coração, o que leva a Cordisburgo (“Cidade do coração”). O município de 9 mil habitantes hospeda o Museu Casa Guimarães Rosa e passou a promover, todos os anos, uma semana dedicada à obra de Joãozito.
foto de abertura: O escritor Guimarães Rosa, junto aos companheiros de viagem, foi retratado pela revista Cruzeiro em 1952. Registro feito por Eugenio Silva.
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