Na desforra tecida pela autora, uma preparadora de textos decide confrontar, sim, e com muito gosto, uma editora que talvez represente o pior do Brasil
Ana Claudia Vargas*
Quem falou que vingança é um prato que se come frio, precisa ler Desforra, o recente livro da escritora Stella Maris Rezende. Com a maestria de sempre, a autora consegue até confrontar esse ditado secular e aparentemente ‘certo’ sobre a vingança. Nesse nosso país erguido sobre as bases do colonialismo, cristianismo, escravismo e elitismo (ufa!), quantas vezes você já ouviu por aí que se vingar não é de bom tom?
Que assim você não vai pro céu? Com certeza, muitas!
Mas aqui nesta bela desforra tecida pela autora, uma preparadora de textos decide confrontar sim, e com muito gosto, uma editora que talvez represente o pior do Brasil. Imagine essa moça como uma dedicada profissional das letras treinada para fazer seu trabalho de leitora crítica e mais que isso, de uma ‘instrumentadora cirúrgica’ da narrativa alheia, que está ao lado da editora e precisa, portanto, se submeter ao ‘comando’ dela.
Pois é, mas acontece que essa moça aqui não vai se submeter não! Ela vai é confrontar a tal editora e o melhor, vai se unir à autora do livro para desafiá-la, e é isto que fundamenta todo o enredo. É no meio dessa trama inventada com uma criatividade que foge de todos os clichês, que a preparadora desfia com argúcia sua mais que merecida desforra.
Ao longo da narrativa, diversas passagens da vida nacional que ficaram entaladas na garganta de todos nós que acreditamos que este país ainda (ainda!) pode ser bom para todos e não somente para uns poucos, são lembradas de forma sutil ou intensa.
É aqui que entram perguntas até hoje sem respostas como: por que existe tanta desigualdade social em um país tão rico? Por que a educação continua sendo uma conquista tão difícil para os menos favorecidos e, sobretudo, para a população negra? Por que os professores continuam sendo uma classe tão (e tão) desvalorizada? Por que somos campeões em violência doméstica, em homofobia e em tantos outros números que deveriam nos envergonhar?
Por que deixamos que aquela criatura fosse eleita em 2018? Sim, aquela lá que homenageou aquela outra que torturou tantos brasileiros como eu e você nos tempos da ditadura?
São muitos aspectos da alma brasileira (conflitantes, intensos, urgentes) que permeiam este livro. E eles precisam ser confrontados todos os dias! Precisamos falar sobre isso até que não seja mais preciso falar sobre isso.
Pois neste ‘Desforra’, Stella Maris criou uma personagem que lava a alma de todos nós que não aceitamos com naturalidade que professores não recebam seus salários em dia, que meninas e mulheres não possam ter liberdade de escolha, assim como todas as minorias, que pessoas negras sejam desrespeitadas nas ruas, nos mercados e em todos os lugares apenas porque são negras.
E se você é uma pessoa que mora neste país, neste começo de século XXI, se tanta desigualdade, abusos variados e atraso lhe deixa com uma baita vontade de gritar, de expressar sua frustração, sua raiva pura e simples, seja inconveniente como a personagem deste livro! Saia cantando, saia conseguindo _ apesar dos pesares _ manter o sentimento de revolta, pois é preciso, sim, se revoltar! Seja uma pessoa rebelde, insubmissa, não aceite nada menos que respeito!
Seja inconveniente ao máximo, lute como uma pessoa que não está aqui neste país para se submeter ao pensamento retrógrado que quer ditar um modo de vida que cheira a fascismo (credo!), ódio ao conhecimento, às artes e tudo mais que significa vida e esperança.
Eu enxerguei tudo isso na trama impossível de ser abandonada deste livro. A gente lê de um fôlego só porque sente essa vontade de (junto com a preparadora de textos) partir pra desforra! Mais que leitores, nos sentimos devidamente representados e vingados por meio da rebeldia indômita dessa adorável (mas não boazinha, hein?) profissional das Letras que ao confrontar uma editora mandona e limitada, expressa, com vigor, nossa gritante oposição a tudo que tem levado esse nosso país ao atraso que nos relega sempre a um futuro que nunca chega.
Por fim: leia ‘Desforra’ e lave sua alma!
*Editora PortalPlenaGente+
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