Apesar do significativo avanço da ciência do envelhecimento, quando se trata de debater estes temas, o preconceito ainda existe e resiste. Mas há pessoas, como o médico Milton Crenite**, que tem desenvolvido projetos e trabalhado para que este tipo de preconceito seja cada vez menor.
Embora a velhice não seja assexuada, ” diversas construções sociais ainda privam os idosos do amor, da sexualidade e do prazer”, como bem ressalta o Dr. Milton Crenitte, nosso entrevistado. Ele também afirma existir ainda ” um mito da ‘velhice assexual’, que dificulta a inclusão da sexualidade nessa fase da vida”.
“Também é preciso entender que a sexualidade pode ser vivida pelo toque, carinho, afeto, pelas relações sociais ou pela maneira que o indivíduo desejar”, defende Crenitte.
Veja a entrevista concedida pelo Dr. Milton Crenitte** ao Portal Plena.
Sexo e velhice são temas ainda tabus na nossa sociedade: como ‘falar’ sobre os dois de forma natural?
Acredito que nas últimas décadas a gerontologia, que é a ciência que estuda o envelhecimento, avançou muito sobre o “mito da velhice assexual”, passando a legitimar a inclusão da sexualidade nessa fase da vida das pessoas. Porém, mesmo com todos os esforços dos especialistas, diversas construções sociais ainda privam os idosos do amor, da sexualidade e do prazer. Nesse sentido, acredito que não existe assunto proibido. A primeira forma é não tratar a sexualidade como tabu. Isso porque tabus geram preconceitos, os quais produzem violências. E essas geram sofrimento.
Outro ponto importante é discutir que sexualidade vai muito além do ato sexual propriamente dito. Ela pode ser vivida pelo toque, pelo carinho, pelo afeto, pelas relações sociais desenvolvidas ou pela maneira que o indivíduo desejar. E com esses conhecimentos em mente, é preciso lembrar que uma comunicação clara e efetiva envolve tanto as manifestações verbais, como as não verbais. Por isso, os profissionais de saúde devem ficar muito atentos às expressões faciais que fazem ao tratar desse assunto, afim de evitar o afastamento das pessoas idosas e os tabus envolvidos no tema.
Em seu trabalho como médico, o senhor percebe esse preconceito? Se sim, como atua para ‘quebrá-lo’?
Sim. Vejo em muitos casos idosos que gostariam de discutir alguma questão de sua sexualidade com seu médico mas não o fazem por vergonha ou por medo de serem considerados “safados” ou “depravados”.
Por outro lado, observo profissionais de saúde que deixam de abordar esse assunto em suas consultas por algum receio ou, até mesmo, por não considerarem o tema importante naquele momento. Dessa forma, uma questão importante é tornar a abordagem da sexualidade uma rotina em consultas. Uma simples pergunta como “Você tem alguma questão sobre sua sexualidade que gostaria discutir?” já poderia mostrar para o indivíduo que o ambiente é seguro, abrindo assim, uma oportunidade para a pessoa se expor.
Outro ponto importante é discutir que sexualidade vai muito além do ato sexual propriamente dito. Ela pode ser vivida pelo toque, pelo carinho, pelo afeto, pelas relações sociais desenvolvidas ou pela maneira que o indivíduo desejar. E com esses conhecimentos em mente, é preciso lembrar que uma comunicação clara e efetiva envolve tanto as manifestações verbais, como as não verbais. Por isso, os profissionais de saúde devem ficar muito atentos às expressões faciais que fazem ao tratar desse assunto, afim de evitar o afastamento das pessoas idosas e os tabus envolvidos no tema.
Quais são os projetos desenvolvidos pela ONG Eternamente Sou?
A ONG trabalha em algumas frentes, sempre tentando trazer visibilidade e acolhimento às pessoas idosas LGBT, além de trabalhar junto ao poder público e formadores de opinião na luta por melhorias em políticas públicas que promovam o envelhecimento ativo e saudável para todos. Há projetos como atendimento psicológico e outros como o café e memórias LGBT, uma espécie de encontro mensal para que os indivíduos se encontrem e debatam algum tema. Já tivemos cursos de sensibilização para profissionais que atuam com esse público, como o “Papo diversIDADE”, e por fim, realizamos anualmente um seminário sobre a temática “Velhices LGBT”. Além disso, estamos trabalhando para implementar um projeto que ajude na redução da solidão e do isolamento social que acometem muitos desses indivíduos.
Para esse ano, o maior desafio da organização está na construção de nossa sede, que possibilitará a realização de mais oficinas e o acolhimento de um maior número de pessoas. Para tanto, estamos trabalhando na divulgação de um financiamento coletivo: https://benfeitoria.com/eternamentesou.
Podemos ‘dizer’ que um idoso LBGT sofre preconceito duplo?
Sim. As pessoas idosas LGBT sofrem um duplo estigma ou duplo preconceito. Por um lado, sofrem o preconceito por serem LGBT e viverem em uma sociedade machista, homofóbica e transfóbica. Por outro, também sentem o impacto do estigma sobre as pessoas idosas em uma sociedade que cultua a juventude a todo custo. Esse duplo preconceito está associado a uma outra questão: a invisibilidade, que também pode ser considerada como uma dupla invisibilidade.
Esse e outros fatores estão intimamente relacionados com a solidão e com o isolamento social ao qual eles estão sujeitos. Alguns estudos norte-americanos mostram números maiores de pessoas idosas LGBT morando sozinhas, sem filhos, solteiras e sem nenhum familiar para chamar em caso de alguma emergência, quando comparados com seus contemporâneos heterossexuais e cisgêneros.
Por um lado, a solidão é capaz de impactar diretamente a saúde, com um maior risco de doenças cardiovasculares e com um pior controle de depressão e de ansiedade. Por outro, ela pode trazer situações desafiadoras no acompanhamento de pacientes com algum tipo de demência ou até mesmo no final da vida.
Nós do Portal Plena acreditamos que a troca de afeto também durante a velhice, é importante para o envelhecimento saudável. Fale sobre isso, por favor.
Vocês tem toda a razão. Por isso, rever os estereótipos negativos da velhice tem um caráter libertador e pode ajudar todos a desenvolverem um envelhecimento ativo e bem-sucedido, assumindo que a sexualidade faça parte dessas estratégias. Nesse sentido, a seguinte citação exemplifica bem essa ideia:
“As expressões de afeto, as fantasias, o desejo de ser seduzido e seduzir, estão presentes na vida dos velhos como em qualquer outra etapa da vida, embora nem sempre se apresente da mesma forma. Resgatar o direito a uma vida sexual do velho implica poder pensar o amor em suas formas de transformação libidinal, ou seja, outras formas de amor, que passam pela ternura, pelos contatos físicos que erogenizam o corpo, como o olhar, o toque, a voz, redescobrindo as primeiras formas de amor do ser humano. […] O velho não deixa de amar, mas reinventa formas amorosas” (Santos, 2003, pp. 22-23)**.
A ONG Eternamente Sou possui uma agenda para levar essa discussão para a sociedade?
Sim. A ONG foi pioneira na implantação do ‘Seminário Velhices LGBT’, que ocorre anualmente em São Paulo. Também tivemos um projeto para capacitação de profissionais que atuam com idosos e estamos trabalhando sempre na discussão e na desconstrução de alguns estereótipos e preconceitos que privam as pessoas idosas do amor, da sexualidade e do prazer.
Milton Roberto Furst Crenitte é médico geriatra, possui graduação e residência pela USP; doutorado em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP (em andamento); é professor do curso de medicina da Universidade Municipal de São Caetano do Sul e diretor de projetos da Eternamente SOU – primeira organização social voltada para atendimento das Velhices LGBT.
**Bibliografia citada: SANTOS, Sueli Souza dos. (2003), Sexualidade e amor na velhice. Porto Alegre, Sulina.
Imagem de abertura: Pixabay