Mas livra a cara de médico que mantinha clínica de aborto em São Paulo porque ele era branco e tinha colaborado com a Ditadura
Em dezembro de 2014 eu escrevi um texto que falava sobre aborto. A matéria começava com o depoimento de uma “psicóloga”, chamada de MD, 52 anos. “O teste deu positivo. Eu estava grávida. Dois meses. Foi desesperador. Eu não poderia criar um bebê, desempregada como estava, ainda estudando, morando longe da família. Moralmente, eu não concordava com o aborto. Foi uma decisão difícil. Uns amigos me avisaram que ali, na Clínica João Moura, que ficava na rua de mesmo nome, eu poderia fazer o aborto. Era uma clínica com fama de segura, frequentada por estudantes da USP. Eles me ajudaram a pagar o médico. Foi tudo rapidíssimo. Tomei um sossega-leão e perdi a consciência, enquanto o doutor Isaac Abramovitc fazia o serviço. Quando acordei, percebi que me haviam vestido com uma calcinha nova, estampada com um desenho infantil. Era de uma cegonha, voando enquanto carregava um bebê gordinho no bico. Desabei, com vontade de morrer. Aquilo foi puro sadismo.” MD era eu, mulher branca, que podia pagar por um aborto naquele consultório bem montado.
Mais de 8 anos depois, volto àquele texto, a propósito de uma reportagem perturbadora publicada pelo “The Intercept Brasil“. Nele, conta-se a história terrível e cruel, vivida por uma criança de 10 anos. Dez anos! Que, tendo sido estuprada, engravidou do estuprador. Que tendo engravidado e manifestado o desejo de fazer o aborto do feto decorrente do estupro, estava sendo mantida em cárcere privado pela juíza de Santa Catarina Joana Ribeiro Zimmer, que afastou a menina de sua mãe e protetora, até que o feto fosse considerado capaz de respirar por conta própria.
E para que impor esse sofrimento indizível a uma menininha de 10 anos e negra? Seria por respeito à vida? Em hipótese alguma. Se fosse para proteger a vida, essa juíza não colocaria a vida da criança grávida em risco, em proveito do feto. Então por quê?
Para conceder a um casal infértil o sonho realizado de ter uma família. “Já imaginou a felicidade desse casal?”, perguntou a juíza à mãe da criança estuprada e grávida. Ao que ela respondeu: “E a senhora já imaginou o sofrimento que está pesando sobre a minha filha?”
A mãe suplica à juíza que a deixe cuidar da própria filha. Mas a juíza é inclemente e ordena que a menina seja colocada em um abrigo, longe da mãe. Para quê? Para que ela não possa retirar de dentro de si o fruto do estupro. Para que ela viva (ou morra) o estupro em cada dia de sua vida.
Eu voltei ao texto que escrevi em 2014, porque é impossível não voltar.
A menina de 10 anos está sendo tratada com incubadora do sonho de um casal de classe média, possivelmente branco, que adotará o bebê achando que este é o seu ato de bondade, de reparação, de caridade, quando ele apenas será cúmplice de um crime: o da desumanização de uma menina de 10 anos (dez anos!), uma criança estuprada e cujo corpo servirá apenas para o gozo de uma família de classe média. Uma família doriana, papai, mamãe e filhinho preto, um atestado de bondade para o casal infértil.
Detalhe ostensivo e pornográfico: a juíza é loira, é branca. A promotora cúmplice é branca. A criança é negra, filha de uma mulher negra.
Corpos da mãe e filha são descartáveis. Tanto que, apesar de médicos e psicólogos deporem no processo, dizendo ser violência física e psíquica a manutenção da gestação no corpinho ainda em formação da criança, a juíza houve por bem contrariar o que diz o Código Penal e toda a jurisprudência para “ofertar” um presente (o “nenê”) a uma família de classe média, desconsiderando o risco de vida imposto à menina grávida, as sequelas psicológicas que advirão do estupro em si e de todo o desrespeito ao seu corpo.
A doutora Joana Ribeiro Zimmer quer desumanizar os corpos de mulheres pobres, reduzindo-as a barrigas de aluguel, como se elas fossem máquinas de parir.
E, no entanto, esse mesmo Judiciário injusto resolveu deixar barata a atividade do médico Isaac Abramovitc, aborteiro branco, canalha, traidor, com consultório situado na rua João Moura, no bairro de Pinheiros, por causa de seus “bons serviços” prestados à Ditadura Militar.
Médico-monstro
Isaac Abramovitc, registrado no Conselho Regional de Medicina de São Paulo sob número 10.612, além de aborteiro tinha sido médico-legista do IML (Instituto Médico Legal) de São Paulo. Durante a Ditadura Militar que governou o país entre 1964 e 1985, envolveu-se em casos de emissão de laudos necroscópicos fraudulentos, tortura e ocultação de cadáveres de opositores do regime. Tão útil foi à Ditadura, que recebeu em 1973 (auge da repressão política), a Medalha do Pacificador, concedida aos militares e civis que se distinguem por “relevantes serviços ao Exército”.
No caso do “doutor Isaac”, os tais “relevantes serviços” consistiram basicamente em dar uma “fachada legal” para os assassinatos, torturas e crimes cometidos pelos órgãos de repressão. Cabia ao IML forjar laudos com nomes e/ou causas mortis falsificados. Em muitos casos, os corpos eram liberados sem nomes ou com nomes falsos para que, ninguém os reclamando, fossem enterrados como indigentes em valas comuns.
Diga-se que, nesse mister, o “doutor Isaac” foi um dos mais prolíficos. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) listou os nomes de 22 vítimas em que coube ao médico “passar um pano” no trabalho sujo de torturadores e assassinos a serviço da repressão.
Dissimulado, o “doutor Isaac” foi capaz de mentir até o impensável.
Oriundo de família judaica moradora no bairro do Ipiranga, Abramovitc recebeu em janeiro de 1972 um corpo para autopsiar. Era do estudante de medicina na Universidade de São Paulo (USP) Gelson Reicher, único filho homem de Berel Reicher e Blima Reicher, judeus como ele, e seus vizinhos no Ipiranga. Refugiados do nazismo.
Isaac Abramovitc conhecia Gelson desde que este era apenas um menino, unido que era à família dele pelos vínculos de imigrantes . Mas naquele janeiro, o corpo do jovem de apenas 22 anos, presidente do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz (CAOC), que escrevia poesias e peças teatrais, chegou-lhe crivado de balas: três na cabeça, três no tronco, um em cada braço e cada perna.
A encomenda feita pelos policiais que mataram Gelson era de que se dissesse que ele havia morrido depois de trocar tiros com uma viatura policial.
Foi assim que o jornal “O Estado de S.Paulo”, em sua edição de 22 de janeiro de 1972, publicou a versão sobre a morte do rapaz: “O volks de placa CK 4848 corre pela avenida República do Líbano. Em um cruzamento, o motorista não respeita o sinal vermelho e quase atropela uma senhora que leva uma criança no colo. Pouco depois, o cabo Silas Bispo Feche, da PM, que participa de uma patrulha, manda o carro parar. Quando o volks para, saem do carro o motorista e seu acompanhante atirando contra o cabo e seus companheiros; os policiais também atiram. Depois de alguns minutos três pessoas estão mortas, uma outra ferida. Os mortos são o cabo da Polícia Militar e os ocupantes do volks, terroristas Alex de Paula Xavier Pereira e Gelson Reicher”.
Isaac Abramovitc providenciou o laudo necroscópico pedido.
Mas uma foto feita do corpo de Gelson Reicher, e encontrada nos arquivos do IML, mostrou muitas outras lesões —não descritas na autópsia.
Segundo o relatório da Comissão Nacional da Verdade, vê-se: “(…) Na região orbitária direita, na pálpebra superior direita, e na região frontal direita a presença de edema traumático, aparentemente associado a uma extensa equimose [hematoma]. A formação desta lesão apresenta características da ação contundente de algum instrumento (…) Na linha da região zigomática [maçã do rosto], manchas escuras, com características genéricas de lesões, sem que se possa definir suas naturezas, e características do(s) instrumento(s) que as produziram, não se encontrando elas descritas no Laudo. O mesmo pode ser observado para a região deltoidea esquerda e região mamária direita.”
Ou seja, Gelson Reicher foi submetido a uma sessão de violenta pancadaria e à tortura.
Além do destaque para a ausência de registro das escoriações que comprovam a tortura, o relatório da CNV destacou que, depois de “ter seus quatro membros atingidos por projéteis de arma de fogo, [Gelson Reicher] não oferecia mais condições de resistência armada nem tampouco de fuga.”
Logo, um médico-legista honesto descartaria a hipótese da “morte em troca de tiros com a polícia”.
Mas não era esse o caso do “doutor Isaac”.
Não só o “doutor Isaac” omitiu todas essas informações de seu laudo necroscópico, como ainda ocultou a identidade de Gelson, a quem, repita-se, conhecia desde menino. E o laudo saiu como sendo de um indivíduo de nome Emiliano Sessa, cujos restos mortais foram enterrados como indigente no Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP).
O ex-administrador do Cemitério de Perus Antonio Pires Eustácio disse à Comissão da Verdade do Estado de São Paulo que todos os indigentes eram enterrados na vala comum, como forma de dificultar o encontro dos corpos pelas suas famílias. Mas ainda havia um detalhe: todos os militantes de oposição ao regime, como foi o caso de Gelson Reicher, eram marcados com um “T” vermelho, indicando a palavra terrorista, no livro de registros. “T” de terrorista.
O “doutor Isaac” e os 51 médicos citados no relatório da Comissão Nacional da Verdade (em um total de 377 autores de graves violações de direitos humanos) nunca tiveram de pagar pelos seus crimes.
Em março de 2008, o “doutor Isaac” chegou a ser preso. Não pelas torturas, mas sob a acusação de comandar uma clínica clandestina de aborto em Pinheiros, aquela, que fazia a “brincadeira” das calcinhas com cegonha.
Na ocasião, a polícia informava que já tinha investigado o médico formalmente pela prática de aborto por pelo menos dez vezes desde 1974. Familiares das vítimas políticas do “doutor Isaac” acharam que, talvez, fosse o começo do fim da impunidade.
Mas ele nunca foi condenado.
O médico nunca teve seu registro de médico (que ele conquistou em 15 de janeiro de 1964) cassado.
Toda essa história de crimes sem castigo só foi aqui contada para tornar ainda mais evidente que, definitivamente, o horror da Justiça discriminatória habita entre nós.
O “doutor Isaac”, apesar de tantos crimes, morreu no conforto da impunidade em 2012.
* Laura Capriglione nasceu no dia 7 de junho de 1959. Formou-se em Física e em Ciência Sociais pela Universidade de São Paulo (USP), onde também obteve o mestrado em Sociologia.
Foto de abertura: Juíza Joana Ribeiro Zimmer contra o aborto e contra a criança estuprada – Solon Soares/Assembleia Legislativa de Santa Catarina.
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