Mulheres negras recebem 71% a menos do que homens brancos de acordo com dados da PNAD e da RAIS
Os dados mostram que as mulheres negras têm as piores taxas em relação aos outros grupos demográficos quando o assunto é renda e emprego. Para o movimento de mulheres, a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) significou uma perspectiva de mudanças em alguns aspectos da vida cotidiana, como o aumento do salário mínimo.
As mulheres negras apresentaram, em média, rendimentos 71,31% menores do que os homens brancos. O dado vem de um artigo de Janaína Feijó, pesquisadora da área de Economia Aplicada do FGV IBRE, com base no dados da PNAD do quarto trimestre de 2019 e da Relação Anual de Informações Sociais.
Quando os rendimentos são corrigidos com relação a fatores como nível educacional, ocupação e setor em que trabalham, idade, experiência, horas trabalhadas, localização geográfica, a diferença cai, mas persiste: mulheres negras recebem 26,98% a menos do que homens brancos.
:: A profundidade da crise na vida das mulheres negras ::
Maria Sylvia Aparecida de Oliveira, coordenadora de Políticas de Promoção da Igualdade de Gênero e Raça do Geledés Instituto da Mulher Negra, acredita que a política de valorização do salário mínimo “já traz uma colaboração significativa para a vida das mulheres, porque sabemos que uma boa parcela da população, incluindo as mulheres negras, está passando fome literalmente e não tem como sustentar seus filhos.”
“Essas mulheres são chefes de família. Se o governo avança nessa pauta, isso é um ganho para a maioria das mulheres. Falando da minha experiência na Geledés, as mulheres pobres, negras e periféricas, muitas vezes evangélicas, estão preocupadas principalmente em colocar comida na mesa para suas famílias e proteger seus filhos pensando na segurança pública”, disse a coordenadora em entrevista ao Brasil de Fato.
:: O legado escravocrata e os desafios das mulheres pretas ::
Desde a campanha eleitoral à Presidência da República, Lula defendeu um aumento significativo do salário mínimo. O petista argumentou que a inflação aumentou muito nos últimos anos, e que o salário mínimo deveria acompanhar essa tendência.
A partir de maio, o salário mínimo deve sair dos atuais R$ 1.302 para R$ 1.320. No primeiro mês do governo Lula, o valor passou de R$ 1.212 para R$ 1.302, o que significou alta acima da inflação de 1,41%.
Brasil de Fato: Como o movimento avalia o governo atual? Sabemos que, independentemente da orientação política do governo, o espaço das mulheres, especialmente das mulheres negras, na política é hostil. Quais são as perspectivas e desafios?
Maria Sylvia Aparecida de Oliveira: Eu acredito que sempre há esperança por mudanças quando temos um governo progressista. Desde o golpe contra a presidente Dilma, retrocedemos em muitas pautas, especialmente aquelas relacionadas às mulheres, com as mulheres negras sendo as mais afetadas. Por exemplo, a emenda constitucional 95 congelou os gastos com políticas públicas e sociais por 20 anos, impactando principalmente a população negra. Durante a pandemia, a falta de políticas sociais afetou significativamente as mulheres negras. A primeira morte registrada por covid-19 de uma empregada doméstica negra no Rio de Janeiro. Infelizmente, a maioria das pessoas que morreu de covid-19 é negra. Em razão do trabalho doméstico ter sido considerado como essencial em algumas cidades, a gente viu o que aconteceu em Recife com aquela trabalhadora doméstica Mirtes, que, sem ter para onde levar o filho, porque as escolas estavam fechadas, levou o filho para o trabalho, teve que sair para cuidar do cachorro da patroa e o filho de cinco anos caiu do nono andar. Durante o governo de extrema direita, a ministra dos Direitos Humanos, da Família e da Mulher retirou o Brasil de acordos internacionais que tratavam do avanço dos direitos das mulheres, como os direitos sexuais e reprodutivos. Recentemente vimos na imprensa sobre uma mulher que precisava realizar um aborto legal devido a um feto com vida inviabilizada pela falta de líquido amniótico. Esse direito é garantido há 80 anos pela Lei de 1940, que prevê essa possibilidade de aborto em situações de risco de vida da mulher ou do feto. No entanto, a juíza negou esse direito para essa mulher. A nossa expectativa é que nós tenhamos uma melhora nesse quadro. A gente sabe que não vai alcançar todos os direitos em quatro anos. A gente espera que esse quadro melhore, mas infelizmente algumas sementes desse pensamento mais de extrema direita, de cunho religioso e moral em relação ao aborto, foram plantadas, e temos visto essas decisões acontecerem, como o caso de duas meninas que tiveram o direito ao aborto negado no ano passado. Então, esses são apenas alguns exemplos, mas podemos ver que ainda há muito a ser feito para garantir os direitos das mulheres, especialmente das mulheres negras.
É interessante que tanto a senhora quanto outras fontes destacam o aborto como uma das pautas em comparação entre o governo anterior e o atual. Qual é a expectativa em relação a esse tema?
A expectativa é que o governo trate essa pauta como uma questão de saúde pública e não como uma pauta moral e religiosa, já que existe muita hipocrisia dessas pessoas que defendem o direito à vida desde a concepção, mas em determinados casos compactuam com a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. Essa afirmação de que as mulheres não devem fazer aborto porque a vida deve ser preservada desde a concepção é uma pauta moral e religiosa que não permite que as mulheres façam aborto. Ao mesmo tempo, contraditoriamente, as pessoas seguem morrendo de formas violentas. Essa contradição e hipocrisia na fala dessas pessoas quando se trata de uma questão de saúde pública, porque quem acaba sendo impactada é a população mais vulnerável, como as mulheres pobres e periféricas que recorrem a métodos inseguros e colocam suas vidas em risco.
A senhora citou que haverá avanços, mas também limites. Gostaria que a senhora falasse um pouco sobre esses limites em relação ao governo, devido à correlação de forças ou ao fato de estar inserido em um sistema capitalista onde as mulheres são preteridas.
É exatamente isso que você está dizendo. Nós temos a vitória de um governo progressista, com o presidente Lula, que é chamado de presidente de esquerda, e, portanto, essas pautas de direitos humanos estariam mais protegidas nas mãos deste governante. No entanto, ele não governa sozinho. Nós elegemos também um Congresso extremamente hostil a essas pautas de esquerda, que são pautas de proteção e promoção dos direitos humanos, ainda que os direitos humanos não tenham esquerda ou direita. Há uma expectativa de que o quadro em relação à pauta das mulheres melhore. Mas a gente tem todo um trabalho de convencimento que não sabemos se é possível sobre um Congresso, que é basicamente de direita. O maior partido hoje e a maior bancada no Congresso Nacional é do PL. Temos expectativa de no mínimo reverter todo o retrocesso que tivemos nos últimos anos na pauta das mulheres e, se possível, avançar em outras áreas. Mas o orçamento para o Ministério das Mulheres também é mínimo, porque o novo governo está trabalhando com um orçamento elaborado pelo governo anterior, que não tinha a mínima intenção de colocar recursos em pautas relativas à questão das mulheres, assim como não há para o Ministério de Direitos Humanos e para a Igualdade Racial. É nesse cenário que a gente busca reverter os retrocessos que tivemos e ampliar o direito das mulheres.
Dentro desse cenário, concretamente o que esse governo pode fazer? A senhora acredita que vai ter avanço em quais políticas? Podemos esperar, por exemplo, que o governo Lula se preocupe mais com questões gerais como a valorização do salário mínimo, que impacta diretamente as mulheres, do que com a descriminalização, por exemplo?
Acredito que o governo está mais preocupado com o emprego, renda e combate à fome, o que já traz uma colaboração significativa para a vida das mulheres, porque sabemos que uma boa parcela da população, incluindo as mulheres negras, está passando fome literalmente e não tem como sustentar seus filhos.
Essas mulheres são chefes de família. Temos dados de 2020, do início da pandemia, que mostram que 43 milhões de pessoas receberam benefícios do Bolsa Família, sendo a maioria mulheres negras. Se o governo avança nessa pauta, isso é um ganho para a maioria das mulheres. Falando da minha experiência como diretora da Geledés, as mulheres pobres, negras e periféricas, muitas vezes evangélicas, estão preocupadas principalmente em colocar comida na mesa para suas famílias e proteger seus filhos pensando na segurança pública. A descriminalização do aborto é uma questão importante, mas para muitas dessas mulheres, o que importa é a comida na mesa e a proteção de seus filhos.
A gente fala muito de violência doméstica. A gente tem a Lei Maria da Penha, que é um avanço legislativo importante para as mulheres, mas protege principalmente mulheres brancas, que têm acesso à justiça e acompanhamento de advogado. Nos casos que atendemos na vida cotidiana na Geledés, vemos mulheres que são maltratadas e tratadas como culpadas de estarem sofrendo violência nas delegacias. Quando a gente vai para a periferia, a gente discute isso com as mulheres. Mas na vida cotidiana, as preocupações são outras, ainda… Porque, veja, a Lei Maria da Penha é de 2006. Mas na vida das mulheres, apesar de conhecerem a lei, pouco mudou. As mulheres negras seguem sendo o grupo que mais sofre feminicídio. Isso mostra um pouco como não importa o governo, há limites. Nos últimos anos, a violência contra a mulher negra tem aumentado, enquanto para as mulheres brancas tem diminuído. Então, há um componente de que as pessoas fingem não ver a questão racial.
Por último, eu gostaria de saber como a senhora analisa o movimento de mulheres hoje no país. Qual é a força do movimento? Existe força, por exemplo, para mobilizar a sociedade para determinadas pautas e avançar no Congresso e no executivo?
Nós estamos saindo de um governo onde não havia qualquer tipo de diálogo nas pautas de direitos humanos, nas relações e nas pautas das mulheres, e o governo Lula tem apenas dois meses. Evidentemente, as mulheres também estão se reorganizando dentro deste cenário para reivindicar os nossos direitos e as nossas questões para os próximos quatro anos. Nós não tínhamos mais um Ministério da Mulher, por exemplo. Então, nesse momento, a gente está se organizando, mas também temos que esperar um pouco para que o próprio governo se rearranje e se organize para aí poder cobrar os nossos direitos e as nossas pautas. E temos que também, de vez em quando, apagar alguns incêndios, porque no ano passado, por exemplo, o Congresso tentou novamente trazer a pauta da questão do estatuto do nascituro. Então, tem algumas questões que a gente tem que ficar atentas. Esse novo governo fez revogações e revogou uma série de decretos, normas e portarias. Isso nos ajuda a tomar fôlego para pensar quais serão os próximos passos para reivindicar para o novo governo as pautas mais importantes para as mulheres negras e para as mulheres de uma forma geral. Nós, movimento de mulheres negras, somos hoje um movimento político autônomo e podemos levar as nossas pautas para esse novo governo.
Edição: Thalita Pires
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