ABANDONO SILENCIOSO: Idosos hospitalizados e esquecidos por um Brasil que envelhece sem rede de apoio

O envelhecimento brasileiro avança em ritmo acelerado, mas o preparo social e institucional para acolher essa nova realidade caminha em passos lentos. O resultado tem sido uma cena cada vez mais comum em hospitais públicos e privados de todo o país: idosos que recebem alta médica, mas não têm para onde ir.
Camila Pereira*
 Permanecem internados por dias, semanas ou até meses, à espera de um familiar que não volta — ou de uma rede pública que ainda não existe em número suficiente para recebê-los.
Segundo o Censo Demográfico 2022, o Brasil tem 32,1 milhões de pessoas com 60 anos ou mais, o equivalente a 15,7% da população. Esse número era de apenas 8,6% em 2000 — um salto que revela um país que envelheceu antes de se tornar socialmente estruturado para isso. A consequência é que cada vez mais famílias de classe C e trabalhadora enfrentam o dilema de como cuidar de um idoso dependente sem tempo, recursos ou rede de apoio.
Entre o dever e o desespero
Diferente do estigma moral que o termo “abandono” carrega, a realidade de muitas famílias é atravessada pela logística da sobrevivência. Longas jornadas de trabalho, deslocamentos diários, ausência de cuidadores acessíveis e a precariedade dos serviços públicos de longa permanência tornam quase impossível conciliar cuidado e sustento.
Não se trata apenas de desinteresse — trata-se de um sistema que empurra pessoas comuns para escolhas dolorosas.
Ainda assim, o Estatuto da Pessoa Idosa (Lei nº 10.741/2003) é claro: abandonar idosos em hospitais, casas de saúde ou qualquer instituição é crime, passível de detenção de seis meses a três anos. O problema é que a punição, sozinha, não resolve o que é essencialmente uma questão social e estrutural.
Os números que não aparecem nas manchetes
Relatórios do Disque 100, canal nacional de denúncias de violações de direitos humanos, registraram mais de 90 mil denúncias relacionadas a idosos em 2023, sendo o abandono e a negligência entre as principais violações. A maior parte dos casos ocorre dentro do próprio lar, mas há um crescimento perceptível das ocorrências em ambientes hospitalares — onde o idoso, já fragilizado, acaba permanecendo após o fim do tratamento por falta de alternativas familiares.
O Ministério da Saúde e o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa alertam que a permanência indevida em leitos hospitalares sobrecarrega o sistema, aumenta riscos de infecção e compromete a qualidade de vida do idoso. Cada vaga ocupada indevidamente por falta de destino representa outro paciente sem atendimento.
A falta de opções públicas
O Brasil ainda possui baixa cobertura de Instituições de Longa Permanência (ILPIs) públicas e poucos Centros-Dia em funcionamento — serviços que poderiam oferecer acolhimento temporário ou acompanhamento diurno. O IBGE registrou em 2022 cerca de 160 mil pessoas idosas vivendo em instituições, número considerado muito abaixo da demanda nacional. A maioria dessas instituições é filantrópica, e poucas contam com subsídio suficiente para atender novas admissões.
Essa ausência de estrutura reflete um vácuo de políticas públicas de cuidado continuado. Falta uma política nacional que conecte hospitais, rede de assistência social (CRAS, CREAS) e famílias em planos integrados de alta e reabilitação. Na prática, a alta hospitalar ainda é vista como o fim de um processo médico — quando deveria ser o início de um processo social de reintegração e cuidado.
Como a Gerontologia pode mudar o cenário
Os profissionais da Gerontologia têm papel estratégico para reverter esse quadro. Com formação que integra saúde, assistência e família, o gerontólogo pode atuar na mediação de alta hospitalar, avaliação de risco social, educação de cuidadores e planejamento de cuidado compartilhado.
A presença desses profissionais nas equipes multiprofissionais de saúde seria um avanço civilizatório: permitiria prevenir abandonos antes que aconteçam, fortalecendo o elo entre família e rede pública.
Além disso, a criação de políticas intersetoriais que unam saúde, assistência social, trabalho e habitação é fundamental. Não se trata apenas de “punir quem abandona”, mas de oferecer condições reais para que as famílias possam cuidar. O Estado precisa estar presente — não apenas como fiscal, mas como parceiro.
Cuidar é corresponsabilidade
O envelhecimento populacional é uma conquista, não uma tragédia. Mas, sem estrutura de cuidado, torna-se uma bomba social silenciosa.
Nenhum idoso deveria morrer sozinho em um leito hospitalar, e nenhuma família deveria ser condenada por não conseguir fazer o impossível. Precisamos falar sobre apoio ao cuidador, centros de convivência, benefícios de cuidado e educação gerontológica nas comunidades.
O Brasil não pode envelhecer desamparado, e cada hospital que hoje abriga um idoso sem destino é um espelho do que ainda precisamos construir como sociedade.
*Camila Pereira é gerontóloga, colunista do Portal Plena Gente+ e uma das criadoras de Geronto’s de Eliite (saiba mais aqui)
Foto de abertura: Idoso abandonado mora há quase 3 anos em hospital na Bahia (Foto: Imagens/ TV Santa Cruz)

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Jornalista com experiência sobretudo em redação de textos variados - de meio ambiente à saúde; de temas sociais à política e urbanismo. Experiência no mercado editorial: pesquisa e redação de livros com focos diversos; acompanhamento do processo editorial (preparação de textos, revisão etc.); Assistência editorial free lancer. Revisora Free Lancer das editoras Planeta; Universo dos Livros e Alta Books. Semifinalista do Prêmio Oceanos 2020.

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