A pesquisadora e gastróloga baiana falo sobre os aspectos que envolvem o ato de cozinhar no Brasil
Algumas histórias sobre os saberes e fazeres dos povos que habitam o território brasileiro estão nas comidas que chegam à nossa mesa.
A memória afetiva e a formação cultural do Brasil se expressam também nos sabores que resultam das técnicas de preparo e escolha de ingredientes e temperos.
Ao mesmo tempo, as raízes de uma cozinha ancestral entram em disputa com as estratégias comerciais de alimentos processados e ultraprocessados, que ameaçam a saúde coletiva e a memória e a cultura dos povos.
Sobre esses e outros assuntos, o Brasil de Fato Bahia conversou com Maria Conceição Oliveira, pesquisadora, gastróloga e especialista em Gastronomia, História e Cultura. Nascida em Itabuna (BA), Conceição é a primeira mulher negra a presidir a associação Slow Food Brasil.
Brasil de Fato Bahia: Primeiro, muito obrigada por aceitar nosso convite. A gente vive em um tempo de pessoas muito atarefadas, comida cara e muita oferta de fast food e ultraprocessados. Com isso, temos perdido o hábito de cozinhar em casa. Queria que você começasse comentando sobre a perda do hábito de cozinhar.
Conceição Oliveira: Quero tirar todo foco do ato romantizado do cozinhar e do cozinheiro, dizendo que todo mundo sabe cozinhar. Com o ambiente gastronômico de chefs estrelares nas revistas e outros meios de comunicação, as pessoas se sentem intimidadas de cozinhar, mas esse é um processo simples que trazemos de memória. Os cheiros do arroz sendo refogado, o feijão de nossas mães e avós, estão na nossa memória afetiva e gustativa, perdemos essa memória afetiva de cozinhar, perpetuar memória com as crianças que um dia repassarão essa memória adiante. As receitas das famílias são um modo de preservar o modo de comer, os ingredientes e as comidas; elas são um acervo precioso. Incluo aqui as técnicas de cozinha que não se resumem às técnicas ensinadas nas faculdades de gastronomia. Essas técnicas estão nas cozinhas das roças, nas cozinhas urbanas, é só observar os cortes das folhas, a identificação e uso das folhas, os temperos que são únicos da cozinha brasileira, aí encontramos tradição e inovação, porque esses saberes e aquelas técnicas, esses valores com novas realidades agregam saberes, aprendemos a valorizá-los ao cozinhar em casa. A cozinha é o espaço da comunhão, do fogo do fogão, a cozinha é a guardiã das memórias, dos segredos, é o lugar do compartilhamento do ato de comer e beber, dos risos. É a alma da casa e depositária das trocas. A comida como identidade e cultura. É muito rico cozinhar em casa, escolher e compartilhar alimentos, isso se perde ao não cozinhar e não usar esse espaço de acolhimento que é a cozinha.
A culinária brasileira, assim como de resto toda nossa cultura, é muito vasta, né?! Qual pode ser o papel da cozinha na memória e na transmissão desses nossos fazeres culturais?
A comida é a expressão da cultura, não só quando é produzida, mas quando consumida e preparada. Em um mundo ideal sem a fome e escassez de alimentos, os povos escolhem seus alimentos fazendo a formação do gosto; com escassez de alimentos e a fome, os poucos recursos que se tem ainda assim se criam técnicas de cozinha e alimentos. Ao ver pessoas cozinhando com carvão ou lenha sem acesso ao gás, veremos essa cozinha que usa ossos ou tripas, ali você pode acreditar tem técnica e, acima de tudo, tem a cozinha da resistência, de existir com criatividade, tem cultura — não a cultura de livros gourmets, mas a cultura de um povo. Comer é uma necessidade básica, desejo primal.
Comer é um ato político. A gente tem repetido muito essa frase de uns tempos pra cá. Pode explicar para nós o significado dela?
Sim, é um ato político, o que comemos? Como comemos? De onde vem a comida que comemos? Qual o nosso poder de escolha? O que está em jogo aqui é a nossa articulação política, estamos vendo um número crescente de transgênicos e agrotóxicos. A Anvisa [Agência Nacional de Vigilância] foi celebrada durante a pandemia, apoiou e analisou vacinas e remédios, mas o que faz sobre agrotóxicos? Existe muita mobilização, mas precisamos fazer chegar na base, na quebrada, na roça, nos centros urbanos, precisamos de uma avalanche de pressão. O agro mata, é sobre isso, e é política.
Conceição, conta um pouco para nós sobre a influência dos povos de África e da comida de santo na culinária nacional?
A África contribuiu muito para a cozinha brasileira trazendo ingredientes e técnicas. Tem um discurso na academia que diz que não houve contribuição, porque escravos não criam. Não é verdade, as sinhás não ficavam naquela cozinha cheia de fumaça e insalubre, as escravas, então, criavam, traziam as memórias da cozinha africana e misturavam e enriqueciam com a cozinha portuguesa. Soube por uma pesquisadora que as escravas que faziam doce tinham seu preço altíssimo, eram as melhores doceiras, mas isso sofre um apagamento na história da alimentação, a doceira é citada como europeia. A comida de santo é um cardápio de comidas afro-brasileiras, criamos aqui, adaptamos ingredientes que existiam na África e não no Brasil. O acarajé é de origem nigeriana, o vatapá, o caruru… A existência da cozinha afro-brasileira, a cozinha de Santo é vasta! Aí tem pratos que foram incorporados pela cozinha brasileira, e outros que permanecem em segredo. A cozinha de santo é tão especial que a pessoa que cuida da comida e escolhe as folhas, recebe uma iniciação especial, são chamadas de Yabassê.
A indústria alimentícia e a propaganda utilizada por ela têm mudado nossos hábitos alimentares?
Tem mudado muito. Ingredientes industrializados já não são os mesmos. Lembra do aroma da aveia do mingau de décadas atrás? Agora é insosso. Poderia citar vários alimentos que foram modificados. A propaganda nos leva a consumir alimentos ultraprocessados. O consumidor tem também as prateleiras dos supermercados com pouca diversidade de alimentos. Toda essa cadeia perversa tem um caminho perigoso, do ambiente familiar, das lanchonetes e, finalmente, das escolas. Só a agricultura familiar pode contribuir de maneira positiva. Precisamos fortalecer nossos agricultores, e pressionar a indústria de alimentos.
Por último, queria que a senhora nos explicasse o que é o movimento Slow Food e qual o papel da Associação Slow Food nesse processo político e cultural.
O Slow Food é um movimento internacional nascido na Itália no fim da década de 1980 e que se difundiu pelo mundo. Surge em contraposição política e ideológica ao fast food e vai agregando conceitos importantes à sua filosofia, como a valorização da biodiversidade, da cultura alimentar e o fomento à educação e à incidência política. Atua em rede e luta pelo alimento bom, limpo e justo para todos. A Associação Slow Food do Brasil é uma organização sem fins lucrativos que compõem esta rede. É guardiã dos programas e das marcas do movimento, faz a interlocução com o Slow Food Internacional, apoia e representa a rede Slow Food Brasil quando necessário e também tem autonomia para realizar seus próprios projetos e parcerias nos campos relacionados à filosofia do movimento.
Foto de abertura: Conceição Oliveira, nascida em Itabuna, é a primeira mulher negra a presidir a associação Slow Food Brasil. – Arquivo pessoal
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