Em meados dos anos 1960, a jovem psicóloga francesa Florence Thomas se apaixonou por um estudante colombiano na capital da França, Paris.
Quando o rapaz quis levá-la para o outro lado do mundo, ela precisou procurar seu novo país no mapa. Nascida na cidade francesa de Rouen em 1943, Thomas descobriu que a capital da Colômbia, Bogotá, fica a 2,6 mil metros de altitude e que, lá, as pessoas tomam chocolate com queijo — uma mistura que, para ela, era incompreensível, mas que, hoje, ela acha um manjar dos deuses.
“Ainda não se falava de Pablo Escobar (1949-1993), nem da cocaína”, conta Thomas à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC. Ela menciona episódios do seu livro autobiográfico, Fragmentos de Vida, o mais íntimo de uma extensa produção de ensaios e pesquisas.
Ela teve dois filhos e se divorciou. Foi professora da Universidade Nacional da Colômbia por mais de 30 anos, onde fundou um lendário grupo de estudos chamado Mulher e Sociedade.
Thomas adotou o feminismo de forma tão apaixonada que, hoje, é considerada referência na Colômbia — ativista pioneira na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos, especialmente pelo aborto, que ela própria praticou na juventude e expôs suas reflexões sobre a experiência no livro Había que Decirlo (“Precisava Contar”, em tradução livre).
Florence Thomas mora em Bogotá há mais de 50 anos. Quando retorna à França, “é para ficar com meus irmãos e me deixar invadir pela nostalgia, reencontrando o sabor das framboesas”. E também para praticar o idioma da sua infância. Ela nunca conseguiu se libertar das letras “R” do francês.
Conversamos com Thomas durante o Hay Festival de Cartagena, na Colômbia — que, em 2025, completa 20 anos de realização no litoral do Caribe.

BBC News Mundo: Como é morar na Colômbia com esse sotaque francês?
Florence Thomas: Quando cheguei, nem tinha sotaque, porque eu tinha estudado italiano, mas não falava uma palavra de espanhol. Precisei estudar muito para dar aulas na Universidade Nacional.
O sotaque não me deixou e eu diria que até me ajudou.
Naquela época, os estrangeiros que chegavam à Colômbia recebiam atenção especial. Acredito que o sotaque me permitiu dizer coisas que as mulheres colombianas não podiam falar naquele momento. Ele me ofereceu uma espécie de imunidade e escuta particular. Vou fazer 82 anos e gostaria de não ter sotaque, mas ele está aqui e me acompanha.

BBC: Como a Colômbia conquistou você?
Thomas: Cheguei no início dos anos 1970, quando o movimento estudantil era forte e nascia o Exército de Libertação Nacional, as FARC [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia], todos os grupos fora da lei.
Às vezes, faltava um aluno na minha aula e, quando perguntava, eles me respondiam: “professora, foi ser guerrilheiro”. Isso me permitiu entender o país, mas também havia os melhores pesquisadores da Colômbia, como Salomón Kalmanovitz, o grande advogado Eduardo Umaña Luna (1923-2008) e os estudantes da violência, não da de hoje, mas da liberal conservadora dos anos 1950. Havia muitos debates e isso me encantou, porque eu vinha da fascinante Paris dos anos 1960, onde sempre se estava debatendo alguma coisa.
Eu trazia uma mala de perguntas e temas não resolvidos. Havia participado de alguns protestos de Simone de Beauvoir (1908-1986) e Jean-Paul Sartre (1905-1980). Lá estavam Michel Foucault (1926-1984) e Pierre Bourdieu (1930-2002), grandes pensadores que observavam a sociedade de outra forma.

BBC: Como você vivenciou o marco do surgimento da pílula anticoncepcional, pelas mãos da sua professora de filosofia, Madame Bouguin?
Thomas: Ela havia sido aluna de Simone de Beauvoir e lecionava filosofia de forma anárquica. Um dia, ela chegou com uma caixinha, como as de chiclete, mostrou e disse: “Mulheres, tenho nas mãos sua libertação.” Ela nos deu uma aula magistral sobre como recuperar a autonomia de decidir ser mãe ou não e quando. Aquilo me marcou. Fiquei disposta a tomar todas as pílulas do mundo e me tornei dependente dos anticoncepcionais, quando passaram a ser encontrados com mais facilidade na França.
BBC: Nos anos 1970, você participava de passeatas pelos direitos sexuais e reprodutivos. E você conta no livro que abortou aos 22 anos. Por que você decidiu divulgar isso?
Thomas: Foi pouco antes de virmos para a Colômbia, em 1965. Eu havia acabado de conhecer aquele homem, nós nos apaixonamos, fomos para a Espanha de férias, uma praia à noite… E minha gravidez veio, apesar da pílula anticoncepcional, que ainda era pouco confiável. Tive um aborto complexo, em condições terrivelmente difíceis, sobre a mesa do refeitório de um médico que atendia em casa — um aborto clandestino. Ele não quis entrar comigo, mas aceitou e me esperou em uma cafeteria. Por isso, cheguei aqui com este peso, que me fez refletir sobre o seu significado para as mulheres. Li muito, descobri um filme maravilhoso — O Segredo de Vera Drake (2004), sobre uma mulher britânica que ajuda as jovens, até que uma delas morre. A polícia chega e acaba com tudo. Na Colômbia, existia a [organização sem fins lucrativos] Profamilia. Ali, formamos a mesa pela vida e saúde das mulheres. Nela, falávamos sobre os direitos sexuais e reprodutivos, trabalhávamos muito com os meios de comunicação, fizemos pesquisas. Graças a isso, conseguimos um primeiro julgamento no Tribunal Constitucional e, depois, o segundo, em fevereiro de 2022, descriminalizando o aborto.

BBC: Chega esta decisão judicial e seu filho posta um texto emocionante… “Quando eu tinha 10 anos, não era mais do que um punhado de mulheres na rua… Eles olhavam para você como se fosse louca. Lembro que te insultaram várias vezes… E meu irmão e eu ficávamos muito assustados… Hoje, homenageio as pioneiras. Quando não havia caminho. Quando ninguém falava disso. Obrigado, mãe; obrigado, loucas. Vocês conseguiram.”
Thomas: Foi muito bonito, porque eu estava na Praça Bolívar [no centro histórico de Bogotá], gritando com as companheiras, uma mistura de gerações — a minha e as jovens. Nós cantávamos, felizes, quando recebi uma mensagem de Nicolás, que tinha 53 anos, dizendo: “Vocês conseguiram, suas loucas!”. Foi lindo, porque também é a vida dos meus filhos, dois homens com uma mãe feminista que se separou 10 anos depois de chegar e decidiu ficar na Colômbia, porque estava apaixonada por este país, pela Universidade Nacional e pelo que se fazia ali.
BBC: Você diria que seus filhos são feministas?
Thomas: São homens sensíveis a estes temas, mas não direi que sejam, porque não acredito que haja homens feministas. Existem homens solidários com a causa das mulheres. Eles têm uma história tão diferente, de um corpo tão diferente do nosso, que é quase impossível. Acredito que as mulheres, talvez pela sua forma particular de viver no mundo, não podem ser apenas ativistas. A vida nos entra pela pele por toda parte. Uma das minhas paixões foi viajar pelo país para contagiar as mulheres, para dizer a elas com linguagem simples, às vezes em dois dias ou em cinco horas, em uma praça pública ou sentadas à beira-mar, que elas poderiam ser cidadãs plenas e tomar decisões sobre seu corpo. Fui criticada e reconhecida, mas consegui contagiá-las. Ainda vou ao supermercado e há pessoas que me abraçam e dizem, “Florence, como é bom o que vocês fizeram por nós”.

BBC: “Amei homens, mas foram homens impossíveis.” Por que você descreve desta forma sua experiência com o amor?
Thomas: Felizmente, para outras mulheres é possível, mas, para mim, o amor foi impossível. Eu amei, não deixei de amar homens a quem sou agradecida, porque eles me ensinaram que, na minha história específica, era impossível. Eu os apreciava, mas foram homens da minha geração, nascidos nos anos 1940, que não sabiam onde ficava a cozinha. Bem, é exagero, mas eles não sabiam fazer café. De forma geral, eram cultos, inteligentes. Foram escritores, historiadores, poetas… Eu me apaixonei sabendo que não poderia esperar nada deles e aprendi a esperar o que eles sabiam fazer melhor, ou seja, contar histórias, a história deste país. Além disso, meus filhos têm um pai maravilhoso. Eu me separei porque o amor nos deixou no caminho. Fizemos o melhor possível, eles nunca nos ouviram gritar. Talvez tenham me faltado alguns anos de psicanálise para responder melhor, mas entendi rapidamente que estes homens poderiam me fazer companhia quando meus filhos estavam com o pai.
BBC: Você foi uma das primeiras a questionar os concursos de beleza. Como resposta, você participou do calendário “Mulheres sem data de vencimento”, posando nua. Qual era o objetivo?
Thomas: Foi em pleno furor das rainhas de beleza, você nem imagina. Era uma reação contra os estereótipos naquele momento. Estávamos em Cartagena e havia cerca de mil jornalistas. Nós nos reunimos e decidimos fazer algo insólito: um calendário. Precisávamos ter mais de 60 anos e ficar nuas, sem Photoshop.
À medida que chegava a data, algumas diziam “Ah, não, meu pai vai me ver…” Mas, no final, ficamos em 12 mulheres, para os 12 meses do ano. Foi em um teatro e eu decidi fazer uma representação de Simone de Beauvoir, com um turbante e muitos papéis com lemas feministas. Mas entramos em pânico quando a fotógrafa, Dora Franco, chegou com dois ajudantes homens. Dissemos “ai, não vamos poder ficar nuas…” Felizmente, havia uísque e ficamos meio embriagadas, mas foi muito bonito. Fizemos um lançamento. O prefeito de Bogotá era Antanas Mockus e a receita da venda dos calendários foi doada às mulheres vítimas da guerra.
BBC: Mais para o final do livro, você diz que viveu a vida louca até os 75 anos, mas que, agora, está adotando a vida lenta. O que é isso?
Thomas: É meio que o último capítulo, aprender que a velhice chega com uma maletinha e o ritmo vai ser diferente. É aprender a apreciar mais a leitura e a escrita tranquila, sem querer estar em todos os eventos. Quando sou convidada, é ótimo, eu vou, mas já não consigo correr para o aeroporto e ir passar dois dias em Manizales [na Colômbia]. Depois da minha vida um pouco louca, este não é um aprendizado fácil. Passar a vida lenta me atingiu muito com a pandemia. Eu tinha 77 anos e estava bem de saúde, mas nos disseram que as mulheres deviam ficar dentro de casa e, se fossem velhas, muito mais para dentro.
Então, eu disse “Droga! Trabalhamos tanto e estamos outra vez na vida doméstica, proibidas de sair.” Foi difícil.É claro que desobedeci, eu ia caminhar quase todos os dias. Não tinha cachorrinho, mas saía. Ainda assim, fiquei totalmente sozinha e disse “Florence, é preciso fazer alguma coisa”. Foi quando comecei o livro Fragmentos de Vida, que me salvou um pouco.
Quando acabei, de repente, eu me senti velha, diferente e queria dar outro sentido ao que chamamos de velhice.
Detesto isso de “idoso”, acho que é preciso dignificar a palavra “velho, velha”, como em muitas outras culturas. Sou velha, gosto disso.
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