Quarentena na Luz: diretor de teatro escreve sobre seu trabalho de apoio aos moradores da Cracolândia…

Todos nós temos ouvido, insistentemente, isto: FIQUE EM CASA! E temos tentado cumprir  porque agora é hora de pensar coletivamente (lembrando que muitos NÃO PODEM ter esse privilégio e devemos ser gratos a eles até o fim dos nossos dias). MAS…e como fica o morador de rua que não tem casa? E como estão aqueles que moram lá na Cracolândia, ali perto da Estação da Luz? Aqueles que são os excluídos entre os excluídos? Pois, eles continuam vivendo a vida difícil que sempre viveram, MAS, estão podendo contar, nesta quarentena, com uma ajuda valiosa que deve ser divulgada para que (quem sabe e tomara) se torne ‘modelo’:  trata-se do diretor de teatro Paulo Faria, da Cia Pessoal do Faroeste, cujo teatro fica bem ali, no meio da cracolândia”.  Pois, o  Paulo resolveu passar a quarentena   “dentro do teatro, dormindo lá, saindo na porta apenas uma vez ao dia para atender a população de rua da região em um trabalho social belíssimo que ele faz sozinho, na raça, com doações de amigos e pessoas que ficam sabendo pelo Facebook”.

Mas o que leva alguém a passar esta fase de isolamento que marcará todos nós, em um teatro situado em plena  Cracolândia? Pois, a resposta,  simples e direta, soa como um ‘tapa’ na cara das pessoas que tem reclamado porque estão sendo obrigadas a ficar em casa, e não podem isso e aquilo, que estão comendo demais e etc. “Paulo decidiu passar pela quarentena isolado dentro de um teatro não apenas pelo seu amor à arte, mas pelo amor que ele tem pelas pessoas do entorno que dependem de sua ajuda. Ao certo, ele já previa o quanto precisariam dele neste momento…” Esta é a resposta.

Paulo Faria** tem publicado os relatos diários destas suas vivências de solidariedade, entregando cestas básicas, tentando ajudar aos moradores de rua da Luz, em seu perfil no Facebook. Aqui no Plena, publicaremos também, porque acreditamos que histórias como estas precisam ser contadas, espalhadas, divulgadas, alardeadas e etc. e etc.

QUARENTENA NA LUZ – 02/04/2020

Hoje foi o dia de travesti aqui na distribuição de cestas. Bombou. A notícia que tinha cesta no Faroeste voou feito passarinho entre as prostitutas, pelo Parque, ganhou Luz. Se propagou pelos pensionatos do entorno, onde algumas moram. E outras famílias também ficaram sabendo. “Tão dando comida aqui no teatro”.

A minha missão, quando essa fase acabar, vai ser continuar mantendo esse alimento, só que no palco. “Sim, aqui é um teatro” “O Senhor parece padre, é uma igreja?” “Eu sou do candomblé” .

Não é caridade, é humanidade. Um exercício contínuo.

Um aprendizado eterno.

Mães vieram. Putas e não putas. Mãe é mãe, não é estado civil, nem é profissão, nem tem que ser diferenciada socialmente, ou por credo ou cor. O Estado tem a obrigação de assisti-las. Todas que buscam apoio. O Brasil que tem uma dívida enorme, escandalosa com a pobreza e racismo, segue, descaradamente, fazendo jus a essa história tão triste e revoltante. Nossas mães, irmãs e filhas. Você as deixariam passar fome?

Estamos distribuindo as cestas das 14h às 15h – e com exceção pra mãe que chegar fora de hora, que precise urgente. E já vivemos isso nesses 10 dias. Certo momento uma mãe foi buscar três famílias equatorianas, moradoras da mesma pensão, em frente ao Largo, em cima da igreja evangélica. “Elas não são brasileiras, mas são legais e não tem comida”. Quem se reconhece? Um tempo depois, já eram 7 e mais duas mulheres chegam com seus filhos no bico do peito.

Como não tem um governo nesse momento assistindo essas mulheres? Olho de um lado e do outro a rua. Vazia. Somente os usuários de crack e pessoas com fome ou sem informação. Precisam se expor, expor sua cria, numa cidade em pandemia, para vir atrás de alimento? Uma hora dessas, o governo já devia estar fazendo essa distribuição. Ter esse diagnóstico. Mas o governo não reconhece pobre como cidadão. Todas sem nenhuma proteção. Nunca tiveram. A desigualdade não é humana.

E chegam mais travestis. Naomi. Já a vi muito. Ela lembra a modelo Campbell, muito mais alta e modelada por silicone industrial. No carnaval ela se veste de espanhola, com seus seios enormes em taças. Corpos trans, cis, sem identidade. Quase todos corpos negros. Mulheres negras em maioria. Quase 20 na frente da porta do teatro. Não precisou fila pra que elas soubessem quem foi a primeira e a última. Primeiro dei para as grávidas. “Mas você consegue carregar com essa barriga?” “Tem mais dois em casa. Você não sabe de nada, bebê” Peguei nome por nome.

Teve uma mãe que ia levar nos braços a cesta, “Você está bem?” “Ela pariu tem 5 dias.” “Larga a caixa, mãe louca!”. Pedi ao homem emburrado do outro lado da calçada, um dos que não ganhou cesta, “Descruze os braços e leve pra mulher a caixa, ela acabou de parir. Ela é sua vizinha!” A partir daí, até o Marcelinho apareceu e ajudou. “Nem vem com tua lábia, que cesta é só pra mulher” “Eu vou levar pra minha mãe” “Tua mãe já morreu, rapá” “Leva logo a caixa que o sol tá quente, e tu vai destilar toda nessa água que tu tá cheirando” Ele saiu rindo “Esse Paulinho…” Aqui é um subúrbio. Uma periferia central.

As primeiras mães que chegaram foram as que eu prometi ontem as cestas pra hoje. O relógio marcou duas horas. Elas estavam na porta. Eram duas. Mas já vieram em três. Me pediram leite. “Tem mais uma que não pode vir, porque tá amamentando, e precisa de leite.” “Será que o senhor consegue leite?” “Leite em pó pra bebê?” perguntei “Qual é o tipo, é de acordo com o mês?” “O líquido do supermercado. O de caixa.” “E a gente tem dinheiro pra comprar leite de bebê?” “Menos de três reais a caixa.” “Cinquenta compra uma caixa com 12 caixas, então?”. “Um pouco mais” “Então passa às 18h, que eu dou cinquenta, vocês vão e dividem entre vocês. Pode ser? Assim é mais rápido, não?” O teatro fica no meio do caminho entre o prédio delas e o supermercado. Quando voltaram com a caixa pra me entregar a nota, foi feita a foto pelo Purí, um artista trans que está fazendo aqui a quarentena com seu namorado Vênus. “Mas pelo amor de Deus, não vão falar que eu tenho dinheiro pra comprar leite. O que eu tenho é cesta.” Elas na rua, em plena pandemia, em busca leite pros filhos. Naquele instante lembrei de minha mãe. Que chegou a sair de casa em busca de comida. Eu era criança. E trouxe leite pra gente. “Vou tentar incluir o leite na próxima cesta”.

Num intervalo, já de tarde, fui almoçar e veio um homem, que já havia estado ali, antes. Informei que as cestas eram só para mães. Infelizmente, eu preciso adotar algum critério. Ou a ajuda seria em vão. Acredito que as mães vão saber como dividir, multiplicar. Penso, como a minha faria se fosse em casa. Como ela sempre fez. Ele me falou que aquilo não era certo. Que eu dei pra travesti preta e não pra ele. Eu respondi que a maioria das cestas eram pras prostitutas do Parque da Luz. E a Naomi é puta, faltou ele incluir, travesti, preta e puta. “Por isso ela ganhou. Pra ir pra casa dela, sair da rua. Tem uma pandemia aqui no meio dessa rua.” Nesse momento passa um senhor de mais de setenta anos, com uma caixa de som, disparando uma voz bem alta, que vendiam estrogonofe a 10 reais, com três de taxa de entrega. Mas na publicidade não tinha o endereço. Aí eu vi que ele entregava com a mão, passando saliva, um xerox com o endereço. Alguns usuários de crack pegaram o papel, acharam um bom negócio. Pensei que certamente ele voltará pro restaurante. Será o proprietário ou o cozinheiro? O avô? “Meu senhor, o senhor devia ir pra casa.” “Na minha casa não tem estrogonofe. Não tem nada.” “Eu tenho um pote de macarrão que fiz ontem, pra almoçar ontem e hoje. O senhor quer?” Catei a vasilha da geladeira, e no caminho peguei um saco de ração das cachorras. Se descer rápido alcanço o cara da carroça que tem um cachorrinho. Grito que espere. Consigo pegar ainda um saco com milho cozido pro carroceiro. Agora, olhando nos seus olhos falei que estava dividindo o meu almoço com ele. Mas a cesta é das mães. “O Senhor me compreende? Por favor, eu estou tentando ajudar as mulheres. Pare de fazer escândalo do outro lado da calçada. Pode ser?” Subi.

De dentro vi o rabo do cachorro balançar, antes de sumir na esquina. Agora, de noite vi o homem sentado no Largo. “Depois devolvo a vasilha” “Não precisa”.  Já se ofereceu pra ficar ajudando na fila das mulheres amanhã, e que eu lembre dele na hora do almoço. Se precisar de algo, ele tá ali. “Boa noite, seu Zé.” Amanhã almoçaremos juntos e distantes. “Aceito sua ajuda na fila sim. Gostou do macarrão? Fui eu que fiz.” Seu José, é um homem negro que vende ferro velho.

A primeira travesti que chegou, estava acompanhada de uma outra. “Qual o nome de vocês?” “O meu é Antonio” Foi quando Gorette interveio “Mas o teu nome não é esse!” “Não é o nome do RG?” “Não, é como você se chama” respondi. “Ohara, Ohara da Silva” “Vocês vão levar uma cesta”. “ A gente é duas” “A gente divide só o quintal” . Tudo bem. Não preciso entender tudo. Só sou um facilitador. Logo após as três mães que saíram, Gorette voltou e trouxe a ficha sua e da amiga preenchidas. “Por favor, joga debaixo da porta! Tô almoçando. Espera, Gorette! Você me faz um favor! Você não mora no mesmo prédio das mães que vieram? Toma mais papel, faz a relação com os nomes de todas as famílias, você pode organizar isso pra mim” “Você quer que eu represente o meu prédio aqui?” “Você faz isso pra mim? Vai me ajudar e a elas, pra que não fiquem vindo muito aqui” “Nem precisa pedir. Eu trago tudo” “Olha Gorette, vai lá e domina, mostra que travesti não é confusão, não” Depois ela voltou de banho tomado, alimentada, com a lista, tá meu Bem? Ninguém segura mais Gorette naquele prédio. “Se precisar me liga. Mas eu não tenho celular, mas a Ohara tem, e tá na ficha dela. Liga que ela me chama no quintal”. Linda.

Amanhã já consegui mais 200 cestas, metade vai sair das doações em dinheiro que recebemos hoje, e uma anja vai comprar 8 da matina no Macro. E as outras cem vem de outra doação, que uma outra anja vai pegar 11h da manhã. Às 14 atenderei mais 30 putas que fiz lista de espera hoje. E o restante vai pras 170 outras famílias já cadastradas. Se você puder, ajude também. Me manda inbox. Vamos contar juntos e juntas essa história.

Paulo Faria fundou a Cia. Pessoal do Faroeste em 1998. Recebeu o Prêmio Coca Cola de direção por Um Certo Faroeste Caboclo/1999. , que ganhou ainda Melhor Coreografia (Luís Miranda) e foi indicado como Autor, Espetáculo, Música e Atriz e,  no mesmo ano, teve duas indicações ao Prêmio APTESP. Recebeu o Prêmio Nacional Plínio Marcos de Dramaturgia/2000 pelo texto A Mulher Macaco. Prêmio CPT de Projeto Visual pela Trilogia Degenerada/2010. Foi indicado 4 vezes ao prêmio Shell.  Em 2014 o Pessoal do Faroeste recebeu o Prêmio Shell na categoria Inovação pelo trabalho de ocupação e intervenção social e artística que contribui para transformação e revitalização urbana da região da Luz. Em 2015 foi escolhido pelo portal R7 Melhor Diretor e Autor e São Paulo pelo espetáculo Luz Negra. Foi diretor de produção do espetáculo As Polacas, com direção de Iacov Hillel. Foi produtor executivo do espetáculo Apocalipse 3:11, do Teatro da Vertigem, em São Paulo, e no Festival Internacional de Teatro em Caracas, em 2001. Exerceu a mesma função na primeira fase do processo de Os Sertões do Teatro Oficina, e também na temporada do Teatro João Caetano do espetáculo Tauromaquia, da Cia. Balagan, em 2005 entre várias outras realizações.

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fonte: assessoria de imprensa/fotos – divulgação – imagem de abertura – Paulo Faria.

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