Por que o governo demoniza o funcionalismo público? Quais as razões para transformar quem serve ao público em inimigo do país?

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Entenda as razões do discurso de ódio criado pelo governo contra os funcionários públicos. 

Wanderley Parizotto**

Fatos e Mentiras

Em 22 de abril do ano passado, o ministro Paulo Guedes, em reunião com o presidente, falou que se pudesse, colocaria  uma granada no bolso de cada funcionário público. Na sequência disse também: “Precisamos privatizar a pXXXX do Banco do Brasil”.  Segundo o ministro, o funcionário público ganha muito e o Estado é inchado. O governo pinça números e os lança para a imprensa. A imprensa os compra como verdadeiros, os transforma em fatos para a sociedade e cria, assim, uma enorme animosidade em relação ao funcionalismo.

Recentemente, a Folha de São Paulo publicou a manchete a seguir,  com grande destaque:

“Servidores concentram seis das ocupações mais bem pagas no Brasil”. (17 de agosto de 2020).

Quem leu a manchete, teve a clara ideia de que o funcionalismo ganha muito. Mentira. A matéria relaciona juízes, desembargadores, promotores, deputados, senadores e ministros. E é óbvio que a remuneração destas categorias é  bem mais elevada em relação à quase todas as demais da sociedade. E é, inclusive, natural que seja. Claro que as distorções geradas pelos penduricalhos devem ser eliminadas.

A realidade do salário do funcionário público no Brasil

Quando excluímos da média os salários mais altos, que representam menos de 10% do todo, o servidor público brasileiro ganha R$ 2.700,00 (em média), considerando as três esferas: federal, estadual e municipal. É mais alta que a média da iniciativa privada? Sim.

Na iniciativa privada, a média de ganho mensal é de R$  2.300,00. Isto é, 20% acima e, não, 70% como dizem.

Pergunto: qual o problema da média pública ser superior? Nenhum, na medida em que o funcionário está ali para servir ao público. Servir a mim, servir a todos, e  não para atender aos interesses privados. E é assim em grande parte dos demais países  quando se compara salários de trabalhadores.

O que está errado no Brasil, não é a diferença, mas as médias salariais que são muito baixas. O brasileiro ganha muito pouco pelo que produz. As mentiras chegam ao ponto da irracionalidade. Sempre ouvimos: na mesma função, o servidor ganha até 70% a mais que na iniciativa privada. É mesmo? Alguém pode me convencer que o professor,  o médico (e outras categorias públicas), recebem mais que seus pares da iniciativa privado?    Mas e o juiz? Alguém gritará. E eu pergunto: existe juiz na iniciativa privada? 

Há distorções e todos sabem. Em sua maioria, no âmbito federal nos três poderes. E todas precisam ser corrigidas. Nos municípios, estados e federação. Contudo, o todo não pode levar a fama das exceções. Muitos dizem: o servidor tem estabilidade de emprego e os demais trabalhadores não, é injusto.

Claro que não. O servidor serve ao público. Se não houvesse estabilidade de emprego, o funcionário deixaria de ser público e passaria a ser servidor político. A cada alternância de poder, haveria a dispensa de muitos e a contratação de novos servidores. Sairia um grupo, entraria outro. O Brasil é assim.

A estabilidade garante, minimamente, a prestação de serviços  com continuidade e sem interrupção. Imagine a cada 4 ou 8 anos, os funcionários de um posto de saúde, por exemplo, sendo quase que totalmente substituídos ? Haveria um caos no país. A estabilidade do servidor público não é invenção brasileira e, muito menos, exclusividade nossa. Na maioria dos países democráticos, a estabilidade no setor público existe. Com raríssimas exceções. EUA, por exemplo.

O Brasil tem muito funcionário público. Outra enorme mentira.

O país tem, aproximadamente, 11,4 milhões de servidores públicos, a maioria nos municípios, o que é natural porque é neles que os serviços são efetivamente prestados.

A relação total de servidores contra o tamanho da população, coloca o Brasil dentro da realidade da maioria dos países. Inclusive, temos menos servidores em  relação à população, quando comparados aos EUA, quase todos os países da Europa, Turquia, Indonésia, Japão e etc.

O governo divulga números soltos e fora do contexto; a imprensa os compra e publica.   A sociedade os entende como verdadeiros e demoniza o servidor. É preciso sim corrigir distorções salariais, investir em programas de qualificação para oferecer melhores serviços à população em todas as áreas. Melhorar salários na educação, saúde, pesquisa etc. Incorporar a tecnologia para melhorar a produtividade.  Rever gastos em diversas áreas com pouca relevância ao bem estar social, como o exército por exemplo. Acabar com gastos inúteis. Vale lembrar que as  gastanças desnecessárias e até escandalosas, são promovidas pelos detentores do poder e não pelos funcionários de carreira em 99,9% dos casos.

Quem contrata garçons, compra lagosta, constrói prédios suntuosos, gasta em excesso com viagens, contrata funcionários comissionados, apaniguados políticos sem qualificação, contrata obras e serviços sem necessidade ou de forma errada, entre outros, não é o funcionário de carreira.

O governo federal gasta cerca de 1 milhão de reais (por mês) com jetons (remuneração extra) para melhorar os salários dos seus ministros que já ganham cerca de R$ 31 mil reais mensais, colocando-os em conselhos de empresas estatais. Foi o servidor de carreira que proporcionou este ganho? Lembro que tudo isso entra na conta da média salarial do funcionário público.   O serviço público brasileiro precisa ser melhorado, sem dúvida, mas dentro de uma visão estratégica, cujo objetivo maior seja o bem estar social. Um plano integrado, discutido. Se for bem pensado e executado, não tenho dúvidas que o resultado também reduzirá os custos dos serviços, sem sufocar salários dos servidores, como está sendo feito hoje. Não será com a reforma administrativa, proposta pelo governo e abraçada por grande parte do Congresso, que os problemas do Brasil serão amenizados. Pelo contrário, serão piorados.  Não são os servidores públicos os nossos problemas. Esta visão foi e é, meticulosamente construída para torná-los os primeiros inimigos públicos  da sociedade.

Qual a principal razão para tamanha perseguição a quem existe para nos servir?

Basicamente, para reduzir a resistência da sociedade e executar um plano de transferência para a iniciativa privada de segmentos altamente lucrativos e estratégicos para o país,  que hoje, parte, está nas mãos do poder público e atende grande parcela da população.

Educação e saúde

Quanto piores os serviços prestados pelo Estado, maior o espaço a ser explorado pela iniciativa privada.
Exemplo: dia sim, outro também, o atual ministro da economia fala na criação de um voucher (documento que garante o pagamento) que  será entregue às famílias mais pobres para que  coloquem suas crianças em creches privadas. O ministro e sua irmã atuam fortemente em instituições privadas de ensino. Parte das escolas privadas, principalmente do ensino superior, mercado altamente lucrativo, já pertencem à Fundos de Investimentos. 

Quanto pior for o  atendimento do SUS – cujo ex ministro da Saúde, General Pazuello,  admitiu não saber o que era antes de assumir o ministério –  melhor para as empresas de plano de saúde e hospitais privados, setores com forte presença de Bancos de Investimentos.

E o governo faz de tudo para piorar estes serviços. Corta orçamento, cria entraves, problemas e nomeia ministro incompetentes.

Sem o Sus e as escolas públicas o país estaria em situação muito pior.  Grande parte da população estaria sem nenhum atendimento médico e sem acesso ao ensino. 

Se estes dois setores ainda funcionam, é graças ao empenho do funcionário publico, apesar do Governo.

Privatização

Privatizar empresas estratégicas e lucrativas a preços de bananas, como Correios, Petrobrás, Eletrobrás e Banco do Brasil, é o objetivo do atual Governo. 

Ouvimos diariamente que só o Brasil tem tantas empresas estatais. Mentira. Os EUA, Alemanha, França, Japão e mais de 100 países também têm. A empresa estatal nasce quando ela é importante para o desenvolvimento do país e a iniciativa privada não tem interesse no negócio  em razão de valores envolvidos e retorno muito a longo prazo . A Petrobrás não existiria se não fosse o governo. Aliás, nem ela e nem outras tantas.
Isso ocorreu e ocorre em todo mundo. Se estas empresas fossem tão ineficientes assim, como sempre é dito, por que a iniciativa privada teria interesse nelas? Porque são grandes negócios. Se a iniciativa privada pode ter lucros com elas, por que o público deveria abrir mão? Porque este é objetivo do Governo: transferir para o mercado, nacos    interessantíssimos de negócios.

Mas vem a pergunta: se a maioria destas empresas são S.A (Sociedade Anônima), ou seja, com ações listadas em bolsas de valores, podendo qualquer empresa ou pessoa física ser sócio portanto, com regras e protocolos, por que, então, tirar o controle das mãos do governo?
Para que a iniciativa privada  tenha toda a liberdade na desregulamentação de mercado. Preços, por exemplo. Ela poderá subir preços e piorar a prestação de serviços para aumentar seus lucros de acordo com seus interesses. 

A EBCT (Correios) é totalmente pública. O governo é dono de 100% do seu capital, não tem ações em bolsa de valores. Está em todo país e é lucrativa. Qualquer gigante do e-commerce se interessa por ela. Depende do preço.  Se ela for vendida nos mesmos padrões de preços de fim de feira como ocorreu com a da BR Distribuidora e as três plataformas de exploração de petróleo, em 2020 (estas por 1.4 milhão de dólares – preço de um apartamento razoável em região nobre de São Paulo ou Rio de Janeiro), não faltarão interessados. Principalmente, gigantes do e-commerce aliados a fundos de Investimentos.

Resumo da ópera: A sociedade brasileira, através de seus impostos, construiu essas empresas e o governo as entrega de mãos beijadas ao mercado.

Outra grande bobagem: essas empresas precisam de investimentos e o governo não tem dinheiro. Mas quem disse que o governo precisa pôr dinheiro nessas empresas para investimento? Coloca se quiser e puder. Como qualquer outra empresa, as estatais podem e devem ir ao mercado buscar meios  para investir em projetos de crescimento e modernização, como sempre fizeram. Terão maior ou menor sucesso em razão da consistência do projeto, indicadores de retorno financeiro e social sobre o investimento e etc. E o Brasil tem o BNDES que pode e deve financiar estes investimentos, como sempre fez. E há outras agências de fomento no mundo, que só existem para isso. 

O Estado do Rio de Janeiro acabou de privatizar o CEDAE, Companhia Estadual de Água e Esgoto.  Já é um crime per si privatizar a água. Entretanto é uma burrice sem tamanho do ponto de vista econômico. A cada R$ 1,00 investido em saneamento básico, o estado economiza R$ 4,00 em saúde. Tem algum negócio lícito que tenha este retorno sobre o capital investido? 4 para 1? Não tem. 

Sempre dirão: Pelo menos nos livramos da corrupção. Aviso aos navegantes: corrupção é inerente ao nosso mundo. Ela existe desde que nos percebemos como espécie. Existe em todos os segmentos e ambientes. Público, privado, empresas grandes ou não. Mecanismos de controle a diminuem. E quando detectada, seus praticantes devem ser rigorosamente punidos. A corrupção é maior ou menor, dependendo da consciência da sociedade, mecanismos de controle e meios de punição.

Outro argumento recorrentemente usado na defesa das privatizações: precisamos pagar nossa dívida pública, senão, vamos quebrar. Mentira.

Dívida pública é comum a todos os países. A relação dívida pública PIB não quer dizer nada. O Japão, por exemplo, tem uma dívida pública mais de duas vezes o tamanho do seu PIB. A dívida pública dos EUA é igual ao PIB. Os exemplos são muitos.

Um pouco de História

Nos governos Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso, o país privatizou tudo que foi possível. Só não privatizou mais porque não deu tempo. Sob as alegações de ajuste fiscal para pagar dívida, foram privatizados os setores de siderurgia e telecomunicações. As empresas foram vendidas, a dívida não foi paga e o país não quebrou. Mas as empresas que as compraram  ficaram  bastante felizes.

Outra bobagem bastante falada: depois de privatizadas as empresas e seus serviços melhoraram. Será?

Recentemente o Amapá teve um longo apagão de energia elétrica. A empresa fornecedora de energia é privada hoje. Antes era pública. Os exemplo são muitos. 

Mas alguns serviços até podem melhorar, mesmo  porque estas empresas estavam prontas e com poucos investimentos, diante do já realizado, as melhorias apareceram rapidamente. Como foram adquiridas a preços, digamos, bastante camaradas, novos investimentos foram subsidiados pelos baixos valores de compra. Exemplo: as estradas. O mesmo ocorreu com as outras privatizações.

Mais ou menos assim: um carro usado vale R$ 10 mil. Porém, há a necessidade de se gastar R$ 2mil para deixá-lo totalmente em ordem. Ele é vendido por R$ 5 mil. O comprador gasta R$ 2 mil. O carro fica sem problemas e bonito e passa a valer R$ 12 mil. Neste caso, o carro hipotético é público. Ou seja, de toda a sociedade.

Governo não funciona como orçamento familiar. Mas sobre isso escreverei em outra oportunidade.

O governo pode e deve se endividar para financiar projetos que gerem desenvolvimento econômico e social. Com desenvolvimento econômico, a arrecadação de impostos cresce. Com o crescimento econômico, a sua relação dívida/PIB diminui. A capacidade do governo de pagar juros da dívida aumenta. Com o desenvolvimento e crescimento de arrecadação, o governo fica mais forte para reduzir juros da dívida.

Mas isso o mercado financeiro não quer. Ele quer receber cada vez mais juros. O principal da dívida, que é a sua amortização ou diminuição, o mercado não quer.

Quando o Brasil teve problemas com dívida pública, nas décadas de 70 e 80 do século passado, deveu-se ao fato de que a maior parte dela era externa e em dólar. Hoje, 100% da nossa dívida é em Reais. Fato que não nos cria maiores problemas, desde que o governo seja responsável em bons projetos e na relação com o mercado financeiro-credores. E ser responsável com os credores não significa atender a todos os seus desejos, mas  ser responsável  com o país, pagando juros honestos e não de agiotas, como ocorre hoje.

Em resumo: criminalizar o servidor público é necessário para não atrapalhar o plano do mercado financeiro e do governo. 

PAULO GUEDES É O MELHOR CÃO DE GUARDA QUE O MERCADO FINANCEIRO PODERIA TER ARRUMADO.

Importante: com ou sem pandemia, este roteiro seria seguido.

 

** Economista, criador do Portal Plena.

imagem de abertura: sintrajufe

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