Dissertação de mestrado explora a relação da identidade regional mineira com o trabalho de um dos maiores nomes da música popular brasileira
Texto: Cecília de O. Freitas, do Laboratório Agência de Comunicação (LAC) da ECA – Arte: Rebeca Fonseca
Criador de sucessos como Maria Maria, Travessia e Caçador de Mim, Milton Nascimento é um dos maiores nomes da música nacional. O artista, que comemorou 80 anos em outubro de 2022, possui diversos trabalhos icônicos que marcaram a história da MPB. Um deles é o Clube da Esquina, projeto que reuniu diversos artistas e resultou no álbum homônimo que está completando 50 anos.
Milton é conhecido por trazer referências regionais que influenciaram a ideia de identidade brasileira na arte, e foi pensando nesse aspecto que o pesquisador Matheus Barros escreveu sua dissertação de mestrado “Sou do mundo sou Minas Geraes”: A identidade regional mineira nas produções fonográficas do Clube da Esquina. A pesquisa investiga a relação da obra de Bituca, apelido de Milton Nascimento, com a chamada “mineiridade”, ou, melhor dizendo, “mineiridades”.
Mineiridades no Clube da Esquina
Sob orientação da professora Heloísa de Araújo Duarte Valente, docente do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP , a pesquisa volta o olhar para o Clube da Esquina, grupo de jovens artistas reunidos durante as décadas de 1960 e 1970 que realizou diversas produções fonográficas, centralizadas nas figuras de Milton Nascimento e Lô Borges. Para Matheus, as perspectivas sob as quais é possível estudar o trabalho do grupo são diversas; dessa forma, a escolhida para a dissertação foi a relação do Clube com a identidade regional mineira, especialmente nos álbuns Minas (1975) e Geraes (1976), de Milton Nascimento.
O interesse pelo Clube da Esquina e pela identidade mineira também partiu de questões afetivas de Matheus, que conta ter memórias de infância “brincando nos terreiros de café, correndo nas estradas de terra” em Minas Gerais, quando visitava sua família. Foi também nessas viagens que o pesquisador teve seus primeiros contatos com o trabalho de Milton Nascimento, apresentado por seu pai. Anos depois, essas lembranças se manifestaram em inquietações, que levaram a investigações e questionamentos sobre a mineiridade, para além dos estereótipos tradicionais da Minas rural.
“Acredito que meu interesse na mineiridade e no Clube da Esquina venha muito de uma inquietação em buscar compreender ‘afinal, o que é ser mineiro’ e compreender como esse grupo de artistas que hoje tem uma importância fundamental no cenário da música popular, e para o Estado de Minas, dialogam, apresentam, criam, ressignificam e reafirmam essa mineiridade.” Matheus Barros, pesquisador
Buscando compreender como se dá, ou mesmo o que é de fato essa “mineiridade”, a pesquisa adentra o conceito de identidade, especialmente no que diz respeito à construção da identidade cultural, dialogando com o trabalho de autores como Darcy Ribeiro e Sérgio Buarque de Holanda. Em sua análise, Matheus define a identidade como a soma de diversos elementos capazes de criar um sentimento de pertencimento, embora não se restrinjam a isso. Um indivíduo também não se limita a fazer parte de uma identidade única, sendo capaz de se identificar ao mesmo tempo com diferentes características e recortes de grupos variados.
E é essa identidade múltipla, tanto na arte do Clube da Esquina quanto no povo mineiro, que se reflete nos álbuns Minas e Geraes. De acordo com Matheus, “se há uma relação com Minas (no trabalho do Clube), com a história e a memória coletiva desse povo, [essa relação] tem de ser de dois momentos distintos, e, de fato, na história econômica e social mineira houve um momento de transição de uma sociedade urbana para uma rural”. A pesquisa atesta como esses diferentes momentos da história e da identidade mineira foram representados nos álbuns: no primeiro, de 1975, a sonoridade moderna e experimental se faz mais presente, enquanto no segundo, de 1976, diversas letras fazem referências a costumes e tradições mineiras, acompanhadas por melodias mais “acústicas”, como caracteriza Matheus.
O pesquisador ainda aponta como a expressão dessa mineiridade ajuda a trazer coesão para os trabalhos de Milton, que pensam as músicas não de maneira isolada, mas no álbum como um trabalho completo. Em Minas, a identidade mineira urbana permite a criação de uma atmosfera que introduz cada faixa. Além disso, Matheus destaca a importância dos arranjos, com referências de gêneros diversos como rock progressivo, jazz e bossa nova, o que dá um caráter experimental para as canções. Ainda no primeiro álbum, os temas das faixas se debruçam sobre protestos políticos e questões sociais da realidade urbana mineira, principalmente considerando o contexto da ditadura militar. A música Saudade dos Aviões da Panair é exemplo disso, quando trata da insegurança e frustração causada pelo fechamento da primeira companhia aérea brasileira, que representava um ideal de desenvolvimento tecnológico e avanço para a população. A faixa ainda conta com referências à vida boêmia e às reuniões entre amigos, que aconteciam nos bares onde os músicos do Clube da Esquina se reuniam com frequência.
Já em Geraes, a ideia de mineiridade apresentada é ainda mais reconhecível, por fazer alusões mais claras ao que se entende como estereótipos da identidade mineira na atualidade. Músicas como Calix Bento exemplificam essa nova expressão, por trazer mais elementos folclóricos, sonoridades mais rústicas e acústicas. A faixa em questão é uma releitura de uma música popular da festa de Folia de Reis. Matheus explica que “trata-se de uma canção com uma melodia e uma poesia simples com muitas repetições, características comuns às práticas musicais coletivas, pois permitem o rápido aprendizado e execução imediata de pessoas externas à prática”. Ainda assim, os arranjos da música foram adaptados e reinventados para se encaixar no álbum e contar a história da identidade mineira pelo olhar do Clube da Esquina.
Diferentes identidades em um mesmo trabalho
A pesquisa ainda abre reflexões sobre a forma com que esses trabalhos, carregados de referências locais, também dizem respeito e influenciam a identidade nacional. Nesse sentido, um dos projetos mais representativos é o álbum Clube da Esquina, de 1972, que traz sonoridades de diferentes gêneros musicais, além da experimentação com temáticas como a latinidade e a religiosidade. Segundo Matheus, “escutar o disco é ser apresentado não somente a Milton Nascimento e Lô Borges, como ilustra a contracapa, mas às influências e às sonoridades, às particularidades de todos os demais músicos que participaram de forma ativa e criativa na construção do disco”.
“Longe de pensarmos a identidade como um modelo, algo único e imutável, principalmente quando nos deparamos com a diversidade cultural e musical presente no território brasileiro, o disco é uma consequência da diversidade musical existente, presente no cenário da época, tanto de origem nacional, popular, como estrangeiro.” Matheus Barros, pesquisador
O pesquisador ainda aproveita para levantar outros questionamentos, tanto sobre o trabalho do Clube da Esquina quanto sobre a relação da arte com a identidade e como uma é capaz de influenciar a outra. A dissertação demonstra, por exemplo, a possibilidade de diálogo entre diferentes linguagens artísticas ao redor de um mesmo tema identitário. Isso fica ilustrado na relação do espetáculo teatral Ser Minas tão Gerais, do grupo Ponto de Partida, com os trabalhos de Milton Nascimento e Carlos Drummond de Andrade. Para Matheus, “a arte é parte representativa na construção de identidades, ao mesmo tempo que identidades, principalmente aquelas estruturadas pela diferença, reforçam suas características através de suas manifestações artísticas e sociais”. (imagem Pinterest (não creditada)
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