Elza Soares: a voz contra a fome, ditadura, racismo e violência calou-se aos 91 anos

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Elza Soares morreu aos 91 anos de idade nesta quinta-feira (20/1).

Morreu no mesmo dia de Garrincha, quase 40 anos depois.

Em 1962, antes da copa do mundo de futebol do Chile, Garrincha prometeu:

‘Olha crioula, essa copa eu vou dar pra você, vou fazer gol pra você (…)” . Cumpriu.

Mané Garrincha e Elza Soares no aeroporto do Galeão. (foto: arquivo/conteúdo Estadão)

Elza foi descoberta num programa de calouros nos anos 1960, conduzido pelo compositor Ary Barroso. Ela tinha apenas 13 anos  e foi criticada pela forma como estava vestida. “De que planeta você vem?”, perguntaram. E ela respondeu: “Venho do planeta fome”. Neste dia, ela cantou uma música chamada Lama.

Famosa pela voz rouca, Elza Soares (1930) é um dos maiores nomes da música popular brasileira. Sua história de vida conta com tragédias e reviravoltas memoráveis.

Infância

Nascida no subúrbio do Rio de Janeiro (em uma favela onde hoje está situada Vila Vintém), Elza da Conceição Soares é filha de um operário (Avelino Gomes) com uma lavadeira (Rosária Maria da Conceição).

A menina começou a cantar com o pai, que gostava de tocar violão nas horas vagas.

Elza teve uma infância dura e subitamente interrompida pelo casamento. O pai de Elza obrigou a menina a casar-se quando ela tinha apenas 12 anos.

Início da carreira

Elza trabalhou como encaixotadora em uma fábrica de sabão no Engenho de Dentro.

Em 1953 ingressou na carreira artística ao fazer o seu primeiro teste na Rádio Tupi, no programa de calouros Ary Barroso, e ficou  em primeiro lugar.

No início da carreira, também trabalhou na Orquestra Garam Bailes, como crooner, até 1954.

Em 1959 foi contratada para trabalhar na Rádio Vera Cruz. Em 1960, atuou no Festival Nacional da Bossa Nova.

Três anos mais tarde, Elza foi a representante do Brasil na Copa do mundo no Chile.

Maiores sucessos de Elza Soares

Entrevista com a cantora do milênio

Elza Soares ficou conhecida por uma série de sucessos, os maiores deles seguem listados abaixo:

  • Dentro de cada um
  • Exú nas escolas
  • Deus há de ser
  • A Carne
  • Mulher do Fim do Mundo
  • Língua
  • O que se cala
  • Dindi
  • Maria da Vila Matilde
  • Banho

Casamento com Garrincha

A relação com o famoso jogador de futebol começou de forma clandestina porque Garrincha era casado. Durante muito tempo, a então recém-cantora foi perseguida, acusada de ter sido a amante que deu fim ao matrimônio do ídolo.

Depois de algum tempo, Garrincha se divorciou, casou-se com Elza e juntos (por 17 anos) tiveram  um filho,  Júnior, que faleceu em um acidente de carro em 1986.

Em 2000, a emissora BBC, em Londres, deu a Elza o título de A Melhor Cantora do Universo.

Na luta contra o racismo, fome, violência e ditadura 

“Carne barata do mercado, é carne negra”

Em entrevistas, Elza sempre assumiu um posicionamento contundente quando o assunto é racismo. “Já passei por situações difíceis. Uma vez, quando cheguei em um hotel para fazer o check-in, me disseram que não havia reserva em meu nome e não me deixaram ficar. Mas eu sabia que havia vaga. Foi discriminação mesmo”, contou em um depoimento dado à jornalista Sabrina Brito e publicado em 2020 na revista Veja.

“Desde a minha juventude, a situação dos negros não melhorou nem um pouco no Brasil. A vida ainda é complicada para as minorias, continua o mesmo sofrimento de sempre”, afirmou. “O racismo ainda está aí e precisa ser combatido. É a dura realidade que devemos enfrentar”, garantiu. E foi assim que ela passou a vida, lutando.

Durante toda a carreira, Elza usou as cordas vocais para cantar a realidade não só das mulheres, mas da população negra. Uma das canções que ficaram mais conhecidas na voz da artista foi “A carne”. De autoria de Seu Jorge, Marcelo Yuka e Ulisses Cappelletti, Soares pediu permissão diretamente ao, também cantor, Seu Jorge para regravar a música ao seu estilo.

Após receber a benção do autor, Elza incluiu o single no álbum “Do Cóccix Até o Pescoço” e, em 2002, o Brasil ouviu ela exclamar: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”.

No videoclipe com duração de quase 5 minutos, a artista retratou a realidade do povo negro. “Que vai de graça pro presídio e para debaixo do plástico. E vai de graça pro subemprego, e pros hospitais psiquiátricos”, retratou.

ELZA SOARES TEVE CASA METRALHADA DURANTE A DITADURA MILITAR

Elza também vivenciou os horrores da ditadura militar brasileira.

Durante entrevista ao Programa do Porchat em 2018, a cantora relembrou um episódio insólito vivido durante os anos de repressão no Brasil. Elza, que era casada com Garrincha na época, viu sua casa ser metralhada no Rio de Janeiro.

Ao escutar os disparos, ela e o craque ficaram apavorados e diante do momento de perseguição e morte no país, a cantora e Garrincha optaram por sair do Brasil, partindo para a Itália.

“Nós estávamos dentro da casa (na hora do ataque). Eu morava no Jardim Botânico e brincava com as crianças na rua. Depois, entramos e começamos a ouvir um barulho de tiroteio”, disse a artista na época da entrevista.

Fábio Porchat perguntou o que a cantora falaria para os brasileiros que pedem a volta da intervenção militar. Elza foi direta na resposta: “Passei por tudo isso e acho que a gente tem que ter muito medo. Medo não, coragem. Porque tudo passa”, disse ela.

SEM RESTRIÇÕES 

Perseguida durante o período da ditadura militar no país, principalmente em virtude do relacionamento com o jogador Garrincha (morto em 1983), Elza declarou em entrevista a Antônio Abujamra, no programa ‘Provocações’, da TV Cultura, que “se não fosse cantora, seria prostituta”. Em relação aos preconceitos e à submissão feminina, concluiu: “Espero que mude logo, que a mulher se permita liderar mais ainda, e, principalmente, seja mais amiga uma da outra”. Casamento gay, como não poderia deixar de ser, não escapa ao grito gregário de Elza Soares. “Tem que liberar, minha bandeira é a do amor sem restrições!”.

A copa que não comemorei – carta de Elza Soares de janeiro de 2018

“Além de ter sido um período muito difícil para o Brasil, a ditadura militar foi quando tive minha casa metralhada. Estávamos todos lá: eu, Garrincha e meus filhos. Os caras entraram, metralharam tudo e nunca soube o motivo.

Era 1970, já tínhamos recebido telefonemas e cartas anônimas, nos sentíamos ameaçados e deixamos o país. Acredito que fizeram isso por conta do Garrincha, mas também por mim, pois eu era muito inflamada e então, como ainda hoje, de falar o que penso. Eu andava muito com o Geraldo Vandré e devem ter pensado que eu estava envolvida com política. Mas eu sou uma operária da música e qual é o operário que não se revolta?

Fomos para Roma e lá o Garrincha, que não tinha sido convocado para aquela Copa, estava em desespero por não estar jogando e por não ter onde morar. Estávamos num hotel, vendo o Brasil ser campeão. Foi quando o Juca Chaves foi comemorar na Piazza Navona, onde fica a embaixada brasileira.


Estávamos trancados dentro de um apartamento e o Garrincha queria sair de qualquer maneira: queria participar da festa, mas ao mesmo tempo estava altamente deprimido. Ele perdeu a casa, teve de deixar o país e não sabíamos como voltar.

Enquanto se celebrava o fato de o país se tornar o primeiro tricampeão na história da Copa do Mundo, o Brasil fazia barbaridades com sua população. O Garrincha sentia um misto de alegria e dor, porque ele queria comemorar, mas, ao mesmo tempo, sentia repulsa por tudo que nos havia acontecido.

Imagine o que é para um homem que, para mim, está acima de qualquer nome no futebol brasileiro, ser mandado embora do país. Isso já é tenebroso, vergonhoso; imagine então esse homem vendo aquela conquista, confinado numa selva de pedra, no exterior, sem entender nada, sem saber o que havia acontecido com nossa casa.

Aquela foi a época em que ele mais bebeu, e não saía de casa, pois tinha vergonha de aparecer embriagado. Eu fazia de tudo para ele não beber, mas não adiantava.

Era tão grande a minha angústia que eu tinha vontade de invadir a embaixada brasileira em Roma. Mas segurei a onda. Continuamos vivendo num hotel e tivemos grande ajuda de Chico Buarque e Marieta. Eles tinham se exilado na cidade e foram dois amigos de alma.

Ali eu tive um bom empresário, trabalhei muito e fui ganhando o dinheiro com o qual pagava todas as contas. Durante um jantar, conheci Ella Fitzgerald, que estava fazendo shows com repertório de bossa nova e teve um problema de saúde. Eu acabei substituindo-a.

Mas, quando descobriram que eu estava trabalhando na Itália sem documentação, tivemos de sair de Roma,então fomos para Portugal por um tempo.

Um dia, estávamos no Cassino Estoril, perto de Lisboa, e encontramos o apresentador Flávio Cavalcanti e o Maurício Sherman, que dirigia um programa na TV Tupi. Eles deram ao Garrincha uma camisa do Brasil, querendo homenageá-lo, mas quem queria camisa da seleção naquela altura?

“Obrigado o… cadê minha casa, cadê minha moradia? Já vesti a camisa do Brasil anteriormente, já dei tudo que eu poderia ter dado ao Brasil”, ele disse.

Passados 50 anos do golpe, ninguém jamais tomou nenhuma atitude sobre o que nos aconteceu naquele 1970, e eu continuo brigando pelo Mané, até hoje.

Quando eu canto “Meu Guri”, canto com muita força, e essa é uma maneira que eu tenho de cantar uma música do Chico, mas homenageando o Mané. Eles são os dois guris de “my life”.”

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